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Sofista de Platão


Pensar que se conhece alguma coisa quando se a desconhece. Acredito ser esta a causa de todos os erros que cometemos ao pensar.” – Hóspede de Eléia falando como Sócrates


Limito-me a afirmar que todas as coisas que atribuímos à Natureza são produtos de uma arte divina (dotada de razão e de conhecimento, oriunda de Deus).” Hóspede de Eléia citando o Demiurgo (265-E7)


Personagens Sócrates – filósofo Hóspede de Eléia – adepto de Parmênides e Zelão, comportamento socrático Teeteto – jovem matemático, cerca de 18 anos Teodoro – velho geômetra, professor de Teeteto


Platão quer refletir sobre o ser e o não-ser, daí escolher como condutor do diálogo o hóspede de Eléia, seguidor de Parmênides (“o que é não pode não-ser, e o que não-é não pode ser”) – porém o comportamento do hóspede é absolutamente socrático.


Para abordar o tema, o diálogo antes discute a natureza dos sofistas, para a qual o hóspede utilizara o método da divisão (diaeresis). Platão retorna ao método de discussão de um tema fragmentando-o em sucessivas divisões na análise de um problema (ver Górgias) – método depois levado por Aristóteles ao paroxismo.

Neste processo o sofista é definido de cinco diferentes maneiras: (a) como um comerciante de ideias (troca ideias por dinheiro); (b) como um caçador de jovens ricos, procurando por jovens ricos com pretensões políticas e, portanto, desejo de aprender a raciocinar e a argumentar; (c) como um erístico, um disputador, capaz de discutir em público duelando intelectualmente com alguém; (d) como um agente purificador, de catarse, como um filósofo mas esta purificação é ambígua, dúbia; e (e) como um produtor de falso conceito de sabedoria.


Platão remete ao mundo das ideias acusando os sofistas de apresentarem apenas as cópias das coisas (imitações, múltiplos) como se fossem as coisas em si – conquistam os jovens falsificando o que mostram, e estes não tem conhecimento para contestá-los.

Para clarificar a natureza do sofista é preciso esclarecer a natureza de falsidade (pseudo), para então entender o significado de verdade (aletheia) e a natureza do filósofo – pois não há verdade sem a possibilidade da falsidade (o filósofo realiza sua vocação no embate contra o sofista).

Da dúvida sobre o sofista saber de fato ou parecer saber o diálogo evolui para as teses de Parmênides (e Zelão) sobre o ser e o não-ser (sua possibilidade de existência). Teeteto questiona se o não-ser não pode ser, como então podemos falar dele? Como falar em falsidade se o não-ser não existe? Ao que deve ser aplicada a designação não-ser? – essa é a pergunta fundamental.

O não-ser seria inconcebível, indizível e irracional, pois a mente só conseguiria lidar com seres que são. A questão é saber se esse não-ser pode ser em algum aspecto (fora da realidade concreta). Em que nível o não-ser pode vir a ser? – esta é a questão central deste diálogo (elevada a Teoria das Ideias).

O problema (como visto em Crátilo) é dar a palavra a mesma validade ôntica da coisa em si – o logos existe embora aquilo que ele denomine não exista. Platão indica haver uma absoluta dificuldade inerente ao problema em fazer o logos captar a verdade. A verdade é captada intuitivamente (processo gnosiológico) e o logos, pelo fato de ter dificuldades próprias de expressão, é um dificultador e nem sempre coincide com a coisa – há uma dificuldade de adaptação do logos com a coisa. Logo pode-se falar de uma coisa que não existe, sendo as palavras aparências das coisas.

Platão quer ir além da missão socrática de recuperação da identidade do logos com a coisa (batalha contra os sofistas, retóricos e erísticos). A dificuldade de identidade entre a palavra e a coisa é produto de (a) a coisa poder ser vista de diferentes maneiras, tendo uma determinação equivoca, e (b) a palavra não substituir a percepção direta.

O “parricídio” de Parmênides se dá com o entendimento de dois sentidos do não-ser: (a) como contraditório do ser (negação dos ser), e (b) como diverso do ser. No primeiro sentido, o não-ser não pode existir (a negação dos ser não pode existir), na no segundo caso o não-ser pode existir porque possui uma sua natureza específica (a natureza da alteridade). Platão demonstra que movimento não é repouso nem repouso é movimento – mas ambos são e são idênticos a si mesmos e, portanto, participam de ser e identidade e, também, já que cada um é diferente do outro, da diferença. Assim, podemos dizer que movimento é, mas também não-é (não-é repouso).

Depois de desmontar a tese ontológica de Parmênides, Platão volta-se para a questão henológica (O uno e os princípiosprimeiros), e indica a necessidade da estrutura hierárquica do ser.

Para os eleatas existe tanto o uno quanto o todo – só que o todo não é uma unidade porque ele é composto de partes – como se resolve esse problema? Existe uma aporia na filosofia de Parmênides quando ele defende a tese de que apenas o um/uno é real. Ele não consegue explicar o todo a não ser que ele o reduza o um ao todo, e isso é como desconsiderar que o todo é formado de elementos menores que o compõem (Platão está atacando os monistas que alegam a existência de apenas uma causa para explicar o mundo). Além disto, há a contradição de admitir-se dois nomes (ser e uno) quando somente o uno existe (uma coisa é o nome, e uma segunda coisa é aquilo que o nome indica).

Platão eleva a questão henológica a uma nova dimensão: (a) o uno em sentido primeiro é absolutamente indivisível e, portanto, absolutamente simples. (b) O que tem partes pode ter unidade, mas somente por participação no uno. (c) O ser participa do uno mas não coincide com o uno (o uno está acima do ser e do uno depende o ser). (d) O inteiro não coincide nem com o ser nem com o uno, mas constitui, num certo sentido, o horizonte que os inclui. (e) E já que o ser não coincide com o inteiro porque implica fora de si o uno do qual participa, o ser não é por si mesmo a completude e incluirá o não-ser (como diversidade) – o ser não é o uno.

 

Ao final do diálogo, Platão aborda o Demiurgo ao falar das artes (poiética – atividade produtiva capaz de levar o não-ser a ser)) divinas, sendo toda as realidades naturais e os próprios elementos (água, ar terra e fogo) produzidos pela Inteligência divina.


 

Notas


  • Platão (427-348 a.C.) nasceu em Atenas ou na próxima Egina.

  • Filho de Ariston, descendente do rei Codro, Perictíone e de um irmão de Sólon do lado materno. Ainda na juventude, recebe o apelido de Platão (“largo”) por razões incertas, mas provavelmente ligadas ao seu tipo físico. Seu nome era Arístocles.

  • Aos 19 anos torna-se discípulo de Sócrates. Sua obra escrita nos chegou aparentemente completa (26 diálogos são considerados legítimos).

  • Segundo o matemático e filósofo Alfred North Whitehead (1861-1947), “A mais segura caracterização da tradição filosófica europeia é que esta se constitui de uma série de notas de rodapé a Platão.”

  • Os subtítulo dos diálogos, e.g. Fedro, sobre o Belo, foram dados por Trasilo no século I, na Biblioteca de Alexandria que então comandava.

  • Sofista, sobre o ser, é diálogo legítimo (gênero comprobatório), provavelmente do período da maturidade, fase da segunda florescência filosófica de Platão.

  • O diálogo faz parte da investigação sobre a diferença entre o sofista, o político e o filósofo (diálogo planejado mas não escrito), e transcorre no dia seguinte ao diálogo Teeteto, e dá seguimento a discussão sobre o ser. No intervalo entre os dois diálogos Sócrates toma conhecimento das acusações contra ele junto ao rei arconte.

  • Werner Jaeger apresenta os sofistas positivamente em sua obra Paidéia.

  • Pródigo é um sofista pelo qual Sócrates nutria respeito.

  • A ideia de ser e não-ser de Parmênides é desenvolvida por Aristótles no princípio de identidade (A é igual a A e não pode ser igual a não-A).

  • Erístico (eristikon), literalmente aquele que ama a disputa ou controvérsia. Aquele que se engaja na erística o faz pelo próprio prazer de polemizar e/ou visa qualquer vantagem que possa extrair da discussão pela discussão, não busca propriamente a verdade ou a consenso – é a arte de ganhar a discussão sem ter razão.

  • Teratologia = monstruosidade ou estudo das anomalias físicas.

  • Doxa (opinião) ≠ Episteme (conhecimento verdadeiro / dedução, silogismo)

  • Indução = observação de vários casos (intuição intelectual). Mas a dedução não pode partir de premissas construídas por indução (doxas), assim somente a episteme + intuição (sophia) é que permite o verdadeiro conhecimento.

  • Todo o conhecimento humano é dedutivo (contribuição de Aristóteles). Só é conhecimento aquilo que é deduzível. O que é induzido não é conhecimento, mas uma acumulação de dados retirada da experiência que, pela repetição, é suposta verdadeira. A intuição é um conhecimento que não passa pela episteme, pois ela está no nous.

  • Catarse = limpeza da alma / purificação – primeiro passo para o processo dialético.

  • Duas enfermidades da alma citadas no diálogo: perversidade e ignorância.

  • Paidéia = retirar a estupidez (educação de formação). Melhor definição de educação.

  • Do ponto de vista grego, o que faz o homem se parecer à imagem e semelhança de Deus é o logos – logos é a palavra, o discurso, o raciocínio, a alma racional.

  • Conceitos de dialética: (a) para Platão é o que leva a catarse, purificação da mente dos erros; (b) para Aristóteles o confronto de duas ideias; (c) para Hegel o processo de confronto e síntese; (d) Marx empresta o conceito hegeliano e aplica na economia (materialismo dialético como conflito de classes econômicas) – a filosofia decaí depois de Aristóteles, salvando-se apenas a Escolástica.

  • O logos (palavra) às vezes não é capaz de capturar o que a coisa de fato é – por isso é que muitas vezes é preciso abandonar o logos e captar a coisa diretamente. Platão antecipou a fenomenologia de Edmund Husserl. Nenhum outro filósofo teve a capacidade de reunir tamanha multiplicidade de problemas como Platão apresenta com tamanha elegância e inspiração literária.

  • Platão precisava da Teoria das Formas para recuperar a univocidade do logos – unificar a pluralidade de acepções (unificadas na forma). Uma teoria cosmológica, cognitiva e gnosiológica (de gnose, conhecimento) para que ele possa propor uma solução. Platão propôs uma hierarquia (das imperfeições do mundo sensível às formas e aos princípios).

  • Mário Ferreira dos Santos em FilosofiasdeNegação e Afirmação apresenta as filosofias de negação (negam o que é conhecimento, negam que as coisas existem) como filosofias falsas, pois as negações (as inexistências) não são passíveis de filosofia. A única coisa que é passível de filosofia são aquelas filosofias positivas que afirmam alguma coisa sobre o mundo.

  • A lógica budista: (a) há coisas que são e que parecem, (b) coisas que são e não parecem, (c) coisas que não são e que parecem, e (d) coisas que não são e não parecem. A ideia de ser e parecer é a base da lógica oriental – são as quatro possibilidades existenciais (raciocínio pelo qual se constrói a visão de mundo do oriente).

  • Honestidade intelectual é não afirmar o que não sabe, e não calar-se quando sabe.

  • Ao partir da perspectiva do eu que indaga, Santo Agostinho seria o primeiro existencialista. Porém, ele não abandona o fato da essência precede a existência e preside as potências. A partir do século XX alguns filósofos passam a acreditar que eu primeiro existo e então posso escolher ser o que quiser – filosofia prometeica e libertária. As filosofias existencialistas diferem-se conforme o filósofo que a professa.

  • O idealismo platônico é uma oposição ao materialismo, diferente do idealismo kantiano que se opõe a realidade. Para o realista as coisas (de res) existem independentemente da nossa existência, mas para Kant as coisas são como a mente as percebe (através das formas apriori – mediadora da realidade). Todos eram realistas até Descarte.

  • Em Enéadas, Plotino erroneamente indica que Platão teria exposto em Sofista uma lista exaustiva dos universais supremos. Mas Platão diz claramente que escolheu apenas algumas das Ideias.

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