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Sobre a Velhice de Cícero

Os que não obtêm dentro de si os recursos necessários para viver na felicidade acharão execráveis todas as idades da vida. – Catão (como personagem do tratado de Cícero)

Todos os homens desejam alcançar a velhice, i.e. adiar a morte, mas, ao ficarem velhos, se lamentam. Eis aí a inconsequência da estupidez! Os prazeres de uma velhice madura e produtiva é um tempo para ser invejado, e não desprezado. Nada é mais pueril que não aceitar as mudanças que o passar dos anos trazem em nossas vidas.


O que reprovam na velhice? Quatro seriam as razões para não apreciarem a velhice: (1) ela nos afasta da vida ativa, (2) enfraquece nosso corpo, (3) nos priva dos melhores prazeres, e (4) nos aproxima da morte.


Mas a velhice não afasta o homem da vida ativa nos assuntos públicos. Não há assunto desta natureza que, mesmo sem forças, os velhos não possam conduzir graças à sua inteligência. Há muitas atividades nas quais nem a força, nem a agilidade física, nem a rapidez é que autorizam as grandes façanhas; são outras qualidades, como a sabedoria, a clarividência, o discernimento. Qualidades das quais a velhice não só não está privada, mas, ao contrário, pode muito especialmente se valer.


Mas a memória não declina? Sim, mas quando não a cultivamos ou se carecemos de vivacidade de espírito. Os jurisconsultos, os pontífices, os áugures, os filósofos certamente são idosos, mas que memória! Os velhos a conservam tanto melhor quanto permanecem intelectualmente ativos. Mesmo um velho agricultor ao ser questionado porque semeava uma árvore que nunca iria ver dar frutos responde: “Para os deuses imortais que querem que eu, tendo recebido esses bens de meus ancestrais, os transmita a meus descendentes.”


A velhice pode ser sempre atarefada, fervilhante, ocupada em atividades relacionadas com o passado e os gostos de cada um. Mas principalmente dá tempo ao homem de estudar coisas novas.


E não faz sentido preocupar-se com o enfraquecimento do corpo, pois é preciso servir-se daquilo que se tem e, não importa o que se faça, fazê-lo em função de seus meios. Tampouco um adolescente não deve lamentar não possuir a força de um touro ou elefante. No caso de um orador, a velhice pode dar um certo brilho no timbre da voz (o idoso deve exprimir-se pausada e suavemente). Muito dos enfraquecimentos sentidos pelo idoso podem se imputáveis aos excessos da juventude – a herança de uma juventude voluptuosa e libertina é um corpo extenuado. Tão pouco, conforme a idade avança, o homem deve parar de cuidar de seu corpo, sempre cuidado de alimentar-se, exercitar-se e dormir corretamente – o exercício físico e a temperança permitem conservar até na velhice um pouco da resistência de outrora.


O essencial é usar suas forças com parcimônia e adaptar seus esforços a seus próprios meios. Então não sentimos mais frustração nem fraqueza. Conta-se que Mílon (atleta grego, século VI a.C.) fez sua entrada no estádio de Olímpia carregando um boi sobre os ombros. O que vale mais? Ter esse vigor físico ou aquele, inteiramente intelectual, de Pitágoras (570-495 a.C.)? Em suma, usemos tal vantagem quando a tivermos e não a lamentemos quando ela desapareceu. Acaso os adolescentes deveriam lamentar a infância e depois, tendo amadurecido, chorar a adolescência? A vida segue um curso muito preciso e a natureza dota cada idade de qualidades próprias. Por isso a fraqueza das crianças, o ímpeto dos jovens, a seriedade dos adultos, a maturidade da velhice são coisas naturais que devemos apreciar cada uma em seu tempo.


Além do mais, ninguém exige da velhice ser forte. As leis e os costumes são feitos de modo a dispensarem esta idade dos encargos que exigem um mínimo de vigor. Assim jamais exigem do velho ir além de suas forças, permitindo-os mesmo permanecer aquém. Muitos velhos são tão fracos que não podem mais sequer assumir qualquer dos encargos ligados a uma função ou simplesmente à vida. Mas esse defeito não é próprio da velhice; é uma questão de saúde., mesmo os jovens são suscetíveis a tais problemas.


Mas não basta estar atento ao corpo; é preciso ainda mais ocupar-se do espírito e da alma. A velhice só é honrada na medida em que resiste, afirma seu direito, não deixa ninguém roubar-lhe seu poder e conserva sua ascendência sobre os familiares até o último suspiro. É buscar o verdor num velho e sinais de velhice num adolescente. Aquele que compreender isso envelhecerá talvez em seu corpo, jamais em seu espírito.


Estudar e exercitar a memória (e.g. decorar poemas, ao deitar-se recordar tudo o que fez, disse e ouviu naquele dia). Dedicando a vida ao estudo, empenhando-se em trabalhar sem descanso, não sente-se a aproximação sub-reptícia da velhice.


Quanto a privação dos prazeres é preciso lembrar que maravilhosa dádiva proporciona a idade se ela nos poupa do que a adolescência tem de pior. Não há pior calamidade para o homem que o prazer do sexo, não há flagelo mais funesto que essa dádiva da natureza. A busca desenfreada da volúpia é uma paixão possessiva, sem controle. Não há um crime, uma prevaricação que a concupiscência não possa inspirar. Se a inteligência constitui a mais bela dádiva feita ao homem pela natureza – ou pelos deuses –, o instinto sexual é seu pior inimigo. Onde reina a devassidão, obviamente não há lugar para a temperança; lá onde o prazer triunfa, a virtude não poderia sobreviver. O prazer, quando intenso e prolongado, é capaz de obscurecer totalmente o espírito. Se o bom senso e a sabedoria não forem o suficiente para afastar a devassidão, pode-se agradecer a velhice por livrar-nos dessa deplorável paixão. Sófocles (496-406 a.C.) disse “Os deuses me preservam disto (sexo)! É com o maior prazer que me subtraí a essa tirania, como quem se livra de um mestre grosseiro e exaltado”.


Por que falar tanto do prazer? Porque, em vez de censurar a velhice, devemos nos felicitar que ela não nos faça lamentar demais os prazeres. Ao renunciarmos aos banquetes, às mesas que desabam sob os pratos e as taças inumeráveis, renunciamos ao mesmo tempo à embriaguez, à indigestão e à insônia. Para Platão (427-348 a.C.) o prazer é a “isca do mal” que fisga os homens como peixes. O velho pode muito bem desfrutar o prazer de refeições equilibradas, e apreciar menos o prazer dos sentidos que a companhia dos amigos e familiares e suas conversas (a velhice aguça o gosto pela conversação).


Uma vez liberada a alma das obrigações da volúpia, da ambição, das rivalidades e das paixões de toda espécie, as pessoas têm o direito de se isolarem para viverem enfim, como se diz, “consigo mesmas”! Se podemos nos alimentar de estudos e de conhecimentos, nada mais agradável que uma velhice tranquila. Sólon (638-558 a.C.) aproveitava cada dia de sua velhice para adquirir novos conhecimentos: conhecimento alimenta o espírito, e nenhum prazer é superior ao do espírito.


O verdadeiro coroamento da velhice seria a autoridade natural adquirida pela experiência e conhecimentos acumulados – mas esta é a recompensa de um passado exemplar. Ser fonte de consultas e objeto de deferências, mesmo que as mais singelas, são satisfações proporcionadas pelo prestígio, e incomparavelmente superiores aos prazeres físicos.


Os velhos inteligentes, agradáveis e divertidos suportam facilmente a velhice, ao passo que a acrimônia, o temperamento triste e a rabugice são deploráveis em qualquer idade. Ao caráter de cada um, e não à velhice propriamente, que devemos imputar todas as lamentações sobre o avançar da idade. A velhice deve ser grave e moderada em tudo.


E, finalmente, por que temer a morte? Ela é incontestável, e se lembrarmos a imortalidade da alma, pode ser que sejamos mais feliz após a morte – não devemos nos afligir com a morte, pois ela dá acesso à eternidade. Os jovens, com muito ainda pela frente, poderiam temer muito mais a morte, mas os velhos não teriam muito mais a esperar. A posição do velho diante da morte é melhor que a do adolescente, pois aquilo que este sonha, aquele já o obteve.


Quando o fim chega, o passado desaparece. Dele resta apenas o que pôde trazer a prática das virtudes e as ações bem conduzidas. Quanto às horas, elas se evadem, assim como os dias, os meses, os anos. O tempo perdido jamais retorna e ninguém conhece o futuro.


Contentemo-nos com o tempo que nos é dado a viver, seja qual for. Para ser aplaudido, o ator não tem necessidade de desempenhar a peça inteira. Basta que seja bom nas cenas em que aparece. Do mesmo modo, o sábio não é obrigado a ir até o aplauso final. Uma existência, mesmo curta, é sempre suficientemente longa para que se possa viver na sabedoria e na honra.


Os frutos da velhice são todas as lembranças do que anteriormente se adquiriu. Tudo o que é conforme à natureza deve se considerar como bom. Que há de mais natural para um velho que a perspectiva de morrer? Vive-se muito bem enquanto se é capaz de assumir os encargos de sua função e de desprezar a morte.


A maneira mais bela de morrer é, com a inteligência intacta e os sentidos despertos, deixar a natureza desfazer lentamente o que ela fez. Os velhos não devem nem se apegar desesperadamente nem renunciar sem razão ao pouco de vida que lhes resta. Pitágoras proíbe que abandonemos nosso posto – ou seja, a vida – sem a ordem formal do comandante-em-chefe que no-lo designou – ou seja, Deus. A hora da morte deve ser encarada com serenidade, sem apreensão. Quanto mais cedo adquirirmos o desprezo pela morte, melhor viveremos e a receberemos – a contínua obsessão pela morte impossibilita a calma do espírito.


Encerrados que estamos na prisão de nosso corpo, cumprimos de certo modo uma missão necessária, uma tarefa ingrata: pois a alma, de origem celeste, foi precipitada das alturas onde habitava e se encontra como que enterrada na matéria. É um lugar contrário à sua natureza divina e eterna. Os deuses imortais distribuíram as almas em corpos de homens para ajudar estes a imitarem a ordem celeste, escolhendo a firmeza moral e o espírito de moderação.


A natureza fixa os limites convenientes da vida como de qualquer outra coisa. Quanto à velhice, em suma, ela é a cena final dessa peça que constitui a existência. Se estamos fatigados dela, então partamos, sobretudo se estamos saciados.


As melhores armas para a velhice são o conhecimento e a prática das virtudes. Cultivados em qualquer idade, eles dão frutos soberbos no término de uma existência bem vivida. Eles não somente jamais nos abandonam, mesmo no último momento da vida – o que já é muito importante –, como também a simples consciência de ter vivido sabiamente, associada à lembrança de seus próprios benefícios, é uma sensação das mais agradáveis.


 

Notas

  • Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.) nasce um Arpino, Itália.

  • Advogado, político e filósofo, foi um dos maiores oradores e escritores em língua latina. Alcançou a posição de cônsul aos 43 anos. Raro exemplo de advogado e político honesto. Acima de tudo foi um patriota, amante da liberdade, que deu a vida por seu país.

  • Como filósofo, traduziu a sabedoria grega em termos que seus conterrâneos pudessem aplicar em suas vidas práticas.

  • Em autoexílio, após recusar uma posição na tirania de César, e sofrendo com a morte de sua filha e os descaminhos do filho, Cícero transforma sua desdita em fértil período criativo.

  • Cícero, em exílio, escreve Sobre a Velhice aos 61 anos de idade.

  • Cícero diz o que pensa sobre a velhice através de um fictício diálogo entre Marco Catão (234-149 a.C., senador e historiador romano) e os jovens, Lélio (c. 188-? a.C., político romano) e Cipião (185-129 a.C., general e político romano), que admiram aquele em não considerar pesarosa sua velhice. Todos são personagens históricos.

  • Cícero cita Isócrates (orador grego) e Górgia de Leôncio (retórico grego) que viveram 104 e 107 anos respectivamente. Uma recordação que a “máquina” humana sempre foi a mesma ao longo da história, e pode durar 120 anos.

  • Cícero ressalta as alegrias de dedicar-se à agricultura – há algo de revigorante em plantar e ver crescer coisas. É também o salutar hábito de uma prática manual, mesmo que como hobby.

  • Nada mais desrespeitoso e descabido que um velho comportar-se como um jovem. Além de perder os vigores da juventude, nada adquiriu espiritualmente. Abdica do dever de transmitir uma herança positiva à geração seguinte – é uma aberração.

  • O engodo rousseauniano do “bom selvagem” contribuiu para o desprezo da velhice no mundo moderno. Mas a valorização da juventude é apenas uma artimanha para manipulá-la politicamente, e desviá-la da maturidade, do caminho da sabedoria.

  • O conflito entre gerações é instrumento político para exacerbar a intromissão do Estado na vida do indivíduo – conflito demanda interferência estatal. A fomentada depreciação da velhice priva a juventude da herança intelectual, tornando o jovem uma fácil presa das ideologias totalitárias.

  • Romanos, como os espartanos, acreditavam que a sabedoria vem com a idade. Cícero insiste que cada estágio da vida tem suas fortalezas e obrigações, prazeres, e significado.

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