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Satiricon de Petrônio

Quem quer que deseje ter uma ideia clara tanto dos eventos ocorridos quanto daqueles que algum dia voltarão a ocorrer em circunstâncias idênticas ou semelhantes em consequência do seu conteúdo humano, julgará a minha história útil (...), ela foi feita para ser um patrimônio útil. – Tucídides, a imutável natureza humana e a finalidade do estudo da história


Personagens Principais Encólpio – jovem, narrador Ascilton – jovem, companheiro de Encólpio Gitão – adolescente, servo de Encólpio Eumolpo – idoso, poeta


Personagens Secundárias Trimálquião – escravo liberto, novo-rico Fortunata – esposa de Trimalquião Licas – inimigo de Encólpio Trifena – mulher apaixonada por Gitão Circe – sacerdotisa do deus Príamo, atraída por Encólpio Crísis – serva de Circe, também atraída por Encólpio 


Interpretação O título Satiricon, ou Satyrica, significa “histórias de sátiros (homens devassos, luxuriosos)” ou, mais livremente, “contos de libertinagem”, mas não deixa de ser uma sátira (satura) de sua época. E é uma sátira sem moralismo, porque o satírico participa da moral do seu ambiente: novos-ricos, pederastas, parasitas, sodomitas, levando uma vida devassa em bordéis e estações de águas.


Petrônio parece que pretendeu ridicularizar a oposição burguesa (habitantes livres) e intelectual para agradar ao imperador Nero. Mas o fato da corte do imperador apreciar este tipo de literatura demonstra que a elite compartia do esgarçamento social que grassava Roma.


Apesar do comportamento desprezível das personagens, a obra tem relevância por seu valor histórico e como clamor de aviso.


Historicamente, além de prover valiosas informações sobre as interações sociais romanas, Satiricon preserva muitas palavras e frases não encontradas em nenhum outro lugar, fornecendo um vislumbre dos padrões de fala de escravos e libertos – é um dos poucos textos na literatura latina que nos lembra que os cidadãos comuns do império não se pareciam em nada com Cícero quando abriam a boca.


Mas é como advertência que a obra mais impressiona. O ambiente de profunda decadência social retratado por Petrônio é o dos nossos dias, sua obra é de assustadora atualidade. A perda do sentido de transcendência religiosa, o culto ao corpo e a matéria, a libertinagem desbragada, o desmantelamento do conceito de justiça e do aparato judicial, o esvaziamento das artes, o abandono da verdadeira educação, o descarte da herança cultural… tudo que Petrônio nos mostra encontra inequívoco paralelo hodierno.


A Roma de Petrônia estava a caminho do seu apogeu imperial e ainda demoraria alguns séculos para desaparecer completamente – a história confirmou aquilo que Petrônio pressentia muito antes no plano artístico. As sementes da destruição já estavam plantadas na decadência espiritual, ética e intelectual. A presente sociedade, ególatra de seus avanços técnicos, revela os mesmíssimos sinais iniciais da inexorável decadência romana, e nada leva a crer que a atual humanidade não terá um destino semelhante.



 


Notas


  • Petrônio, o provável autor de Satiricon, foi uma figura proeminente no círculo do imperador romano Nero (r. 54-68 d.C.).

  • Em Anais, Tácito descreve Petrônio como o arbiter elegantiae (árbitro da elegância) de Nero.

  • O romance teve seu gênesis na Grécia ao redor do século I d.C.. Cinco romances completos chegaram aos nossos dias, sendo Dáfnis e Cloé (século III d.C.) de autoria de Longo o mais conhecido.

  • Esses romances gregos são todos variações de um enredo padrão, apresentando um casal de amantes infelizes e suas provações e tribulações. Começa com um par de jovens inocentes e bem-nascidos se apaixonando, mas são impedidos de se casar ou separados logo após o casamento por uma série de infortúnios ou aventuras em que viajam para terras exóticas. Os elementos padrão incluem tempestades, naufrágios, sequestros por piratas, tentativa de estupro ou sedução da menina, e até morte aparente de um dos amantes. Por fim o casal amoroso se reencontra em um final feliz.

  • A Nova Comédia, o épico, e até a história são fontes de influência nessa trama típica dos primeiros romances gregos; a inovação foi o uso da prosa para ficção. A influência da Nova Comédia é evidente na trama de um jovem casal enamorado e no uso de coincidências extravagantes para promover o enredo. As aventuras, naufrágios, sequestros e assim por diante lembram as aventuras de Odisseu na Odisseia. E as descrições detalhadas de terras exóticas lembram as porções “etnográficas” de Herôdotos. O uso da prosa no romance foi um afastamento das convenções anteriores da literatura antiga, quando ficção era escrita em forma poética.

  • Satiricon remete às convenções do romance grego quanto à sua forma e tema – é escrito em prosa (embora contenha alguns segmentos de poesia), e inclui aventuras e desventuras românticas (ou ao menos eróticas). Porém, diferentemente das estereotipadas e incolores personagens do romance grego, Satiricon apresenta personagens extremamente individualistas e memoráveis.

  • A incerteza sobre a autoria de Satiricon também torna incerta a data em que foi escrita, podendo a obra ser uma sátira dos romances gregos ou uma de suas inspirações.

  • Satiricon pode ter sido o início da tradição do romance picaresco, o mais corrosivo dos gêneros dedicados à imperfeição humana – obras que provocam risos ao mostrar o contraste entre um ideal e a imperfeição evidente que o contradiz.

  • A obra original continha talvez 20 livros, mas partes de apenas 3 sobreviveram, provavelmente do final da narrativa; muito do que resta são passagens curtas e desconexas. A narrativa mais longa, Banquete de Trimalquião, provavelmente constituiu a maior parte de um livro.


  • Ao contrário de outros romances antigos, o texto inclui grandes seções de poesia; sendo semelhante ao gênero conhecido como sátira menipeia (gênero literário originário grego (por volta do século II a.C.) e caracterizado por sua abordagem eclética e humorística para criticar instituições, convenções e ideias contemporâneas).

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