top of page

ParaĆ­so Perdido de John Milton

ā€œSĆŖ forte, sĆŖ feliz, e ama, mas antes A quem obedecer Ć© amar guarda Seu mandamento. Cuida que as paixƵes Teu juĆ­zo nĆ£o desviem, que o arbĆ­trio Livre obstaria. A tua e a dos teus Boa ou mĆ” a sorte em ti estĆ”. Cuida-te Alegrar-me-Ć”s na tua perseveranƧa, E aos benditos. SĆŖ firme; sĆŖ-lo ou nĆ£o A ti o deixo livre e ao teu arbĆ­trio. Perfeito dentro, nĆ£o procures fora Ajuda; nĆ£o te tente a transgressĆ£o.ā€ ā€“ Rafael aconselha AdĆ£o (Livro VIII 633-643)


Personagens Principais Deus ā€“ o criador onipotente, onisciente e onipresente do universo Filho ā€“ filho de Deus (aparentemente nĆ£o-eterno como Deus para Milton) SatanĆ”s ā€“ anjo caĆ­do pela inveja do Filho (antes chamado LĆŗcifer) AdĆ£o ā€“ primeiro humano criado por Deus Eva ā€“ primeira mulher criada por Deus


Personagens SecundĆ”rias Miguel ā€“ arcanjo da justiƧa Rafael ā€“ arcanjo enviado para falar com AdĆ£o Gabriel ā€“ anjo que guarda o portĆ£o do Ɖden Abdie ā€“ anjo caĆ­do que retorna a Deus Urania ā€“ a musa evocada por Milton Uriel ā€“ um dos sete arcanjos ZefĆ£o e Ituriel ā€“ anjos que ajudam Gabriel a guardar o Ɖden Morte ā€“ filho de Pecado e SatanĆ”s Pecado ā€“ filha de SatanĆ”s, metade mulher, metade serpente Belzebu ā€“ anjo caĆ­do, age como porta-voz de SatanĆ”s Belial ā€“ anjo caĆ­do, propƵe nada fazer contra Deus Mammon ā€“ anjo caĆ­do, propƵe construir um impĆ©rio no Inferno Moloch ā€“ anjo caĆ­do, propƵe guerra frontal contra Deus Mulciber ā€“ anjo caĆ­do, principal arquiteto do PandemĆ“nio



InterpretaĆ§Ć£o Livro I: Logo nas primeiras linhas Milton estabelece o tema do poema: a desobediĆŖncia do homem e sua queda do ParaĆ­so, tendo como grande argumento a busca da eterna ProvidĆŖncia e o esclarecimento dos caminhos de Deus ao homem ā€“ a obra nos instiga a refletir em como o homem deve viver sua existĆŖncia apĆ³s a perda do ParaĆ­so.


Depois deste inƭcio auspicioso, os versos seguintes nos levam ao fundo do Inferno e introduzem SatanƔs, a causa do erro de nossos primeiros ancestrais.


Ao definir-se, SatanƔs afirma que a (sua) mente determina a realidade:


ā€œThe mind is its own place, and in itself Can make a Heaven of Hell, a Hell of Heaven.ā€


HĆŗbris, a imanĆŖncia absoluta, haveria melhor definiĆ§Ć£o da mais destrutiva patologia humana? O homem sem noĆ§Ć£o da transcendĆŖncia acaba preso Ć  matĆ©ria, e entregue as suas pulsƵes parece repetir SatanĆ”s: ā€œBetter to reign in Hell, than serve in Heaven.ā€


SatanĆ”s busca vingar-se de Deus, cria o palĆ”cio infernal (PandemĆ“nio) e convoca os anjos caĆ­dos ("Awake, rise, or be for ever fall'n.") para debaterem sua missĆ£o apĆ³s a queda do CĆ©u.


SatanĆ”s no Livro I do ParaĆ­so Perdido Ć©, de certa forma, uma figura atraente. Muitos admiram o rebelde, especialmente o rebelde que nĆ£o se curva diante do adversĆ”rio, mesmo na derrota. Ele Ć© um lĆ­der com uma potente retĆ³rica. E atrai simpatia quando aparenta sentir tristeza pela dura situaĆ§Ć£o daqueles a quem levou a um castigo tĆ£o terrĆ­vel. Mas Milton nĆ£o pretende que vejamos SatanĆ”s como um herĆ³i. Se ele ainda apresenta alguns traƧos positivos Ć© porque ainda estĆ” prĆ³ximo de seu estado original ā€“ ele foi o anjo mais lindo que Deus criou: LĆŗcifer, filho da Luz. Mas mesmo no Livro I os danos do seu pecado jĆ” comeƧam a aparecer. Ele Ć© dado a rompantes. Ele apresenta a desculpa mais comum que o transgressor que falhou pode apresentar: diz mais de uma vez que nĆ£o tinha como saber que Deus era tĆ£o forte quando ele se rebelou, jĆ” que ninguĆ©m jamais havia tentado Sua forƧa. Ele mente quando afirma ter esvaziado o CĆ©u, pois apenas um terƧo dos anjos se rebelou. O resto do poema, especialmente os Livros V e VI, tambĆ©m revelarĆ” outras mentiras. E ele Ć© um tolo. Apesar da terrĆ­vel derrota que acaba de sofrer, ele recusa reconhecer o poder de Deus. Ele continuarĆ” a batalha, embora devesse perceber que tudo o que pode obter com sua luta Ć© mais dor para si e seus comandados. Mas ele insiste em se iludir. Milton diz que SatanĆ”s e seu exĆ©rcito sĆ³ podem emergir do lago de fogo porque Deus permite.


Livro II: SatanĆ”s abre o debate sobre qual curso a seguirĀ para cobrar o que considera sua justa e velha heranƧa: guerra aberta ou perfĆ­dia encoberta? TrĆŖs demĆ“nios adiantam suas propostas: (a) Moloque propƵe guerra aberta contra o CĆ©u, (b) Belial prefere a facilidade ignĆ³bil e preguiƧa pacĆ­fica para nĆ£o ofender ainda mais a Deus e perder sua existĆŖncia, e (c) Mammon prefere buscar o bem em si mesmos construindo um impĆ©rio no Inferno. Mas Belzebu relembra os planos que foram ouvidos, quando os caĆ­dos ainda estavam no cĆ©u, de que Deus criaria um novo mundo (a Terra) e um novo ser (o homem) que lhe traria alegria, e propƵe destruir ou corromper esta nova criaĆ§Ć£o para ferir a Deus sem guerra aberta ā€“ o plano de SatanĆ”s, apresentado por Belzebu, Ć© o escolhido. Curiosa demonstraĆ§Ć£o da manipulaĆ§Ć£o de um processo supostamente democrĆ”tico: o Livro I deixa claro que SatanĆ”s jĆ” sabia que pretendia uma perfĆ­dia encoberta para se vingar de Deus, mas em vez de apresentar seu plano diretamente, ele planta seu fantoche, Belzebu, na audiĆŖncia. Os outros demĆ“nios tĆŖm uma palavra a dizer, e quando parece que a facĆ§Ć£o Belial-Mammon venceu, o tenente de SatanĆ”s fala de forma poderosa e persuasiva. Os demĆ“nios concordam e dĆ£o a SatanĆ”s um mandato para fazer o que ele planejou fazer de qualquer maneira. O grupo nĆ£o chegou a uma decisĆ£o real. Foi levado a concordar com a decisĆ£o que SatanĆ”s jĆ” havia tomado. Este procedimento diabĆ³lico Ć© comum nĆ£o sĆ³ na polĆ­tica, mas em toda e qualquer reuniĆ£o visando uma decisĆ£o seja num sindicato, num clube ou numa empresa.


Embora a proposta de Belzebu receba ampla aprovaĆ§Ć£o, nenhum dos anjos caĆ­dos se voluntaria para empreender a viagem. SatanĆ”s avanƧa para ā€œbuscar a libertaĆ§Ć£o para todos nĆ³sā€ e se propƵe a fazer a viagem Ć  Terra para descobrir uma maneira de destruir o homem. Em resposta, os anjos caĆ­dos adoram SatanĆ”s como um deus. Para se ocuparem durante a jornada de SatanĆ”s, os anjos caĆ­dos se dividem em trĆŖs grupos na busca de atividades para aliviar sua dor. O primeiro grupo preocupa-se com esportes e artes marciais. O segundo grupo retira-se para um vale para estudar poesia e mĆŗsica. E o Ćŗltimo grupo retira-se para uma colina para prosseguir com a filosofia. Todas estas atividades trazem alĆ­vio ao homem, mas o fato dos demĆ“nios tambĆ©m atravĆ©s delas se aliviarem nĆ£o deixa de indicar que estas atividades podem tambĆ©m ser usadas para o mal ā€“ isto Ć© verificado especialmente nas artes e na filosofia, principalmente depois do advento da Era Moderna.


ƀ medida que SatanĆ”s se aproxima dos portƵes do Inferno, ele encontra duas figuras sombrias ā€“ o Pecado e a Morte. A Morte foi colocada no portĆ£o para impedir que alguĆ©m saĆ­sse. Quando a Morte obstrui a passagem de SatanĆ”s, eles iam entrar em conflito quando Pecado interveio. SatanĆ”s nĆ£o os reconhece, mas Pecado Ć© sua filha, nascida de sua prĆ³pria mente. Depois ele se apaixonou por ela e gerou Morte, seu filho e neto ā€“ mais uma poderosa imagem do potencial erro humano: o homem ardoroso dos prĆ³prios vĆ­cios gerando morte.


A metade superior do corpo de Pecado Ć© atraente, mas quando cedemos Ć  tentaĆ§Ć£o e realmente fazemos o que Ć© errado, descobrimos sua feiura, pois Ć© feia da cintura para baixo ā€“ somos atraĆ­dos por um prazer transitĆ³rio apenas para descobrimos as amargas consequĆŖncias do pecado, que seus frutos podem levar Ć  morte do espĆ­rito, ao tipo de remorso que corrĆ³i a consciĆŖncia sem oferecer a possibilidade de arrependimento ou alĆ­vio.


Morte Ć© ainda mais horrĆ­vel que Pecado. Esta pode ser monstruosa, mas, pelo menos, tem uma forma. A Morte Ć© disforme, sem contorno ou essĆŖncia, devorando tudo o que encontra, transformando suas vĆ­timas no nada. A figura, tal como Milton a apresenta, Ć© o material dos nossos piores pesadelos, o inominĆ”vel, algo disforme e horrĆ­vel que nos puxa para o nada que tememos.


Pecado detĆ©m a chave dos portƵes do Inferno. Deus a encarregou de manter os anjos caĆ­dos ali cerrados. SatanĆ”s conta aos dois seu plano e convence Pecado a abrir os portƵes para ele. SatanĆ”s sai do portĆ£o e comeƧa a cair. Ele nĆ£o pode superar esta descida rĆ”pida atravĆ©s do abismo atĆ© que um vento fortuito o pegue e o levante (em vĆ”rios momentos da narrativa Deus age para que SatanĆ”s consiga seu intento. A Queda era prevista e necessĆ”ria para o aperfeiƧoamento do homem. Deus nĆ£o pode ter inimigos, o Diabo Ć© um aspecto de Deus ā€“ o Diabo Ć© uma espĆ©cie de personal trainer da alma humana). Ao longo de sua jornada pelo abismo, SatanĆ”s pede ao Caos instruƧƵes para chegar Ć  Terra.


Teologicamente, a alegoria Ć© bastante adequada. Somente o pecado pode abrir as portas do Inferno. A Ćŗnica maneira de descobrir essa cidadela Ć© pecando. Pecado e Morte constroem o caminho mais fĆ”cil entre a Terra e o Inferno, pois ceder Ć  tentaĆ§Ć£o nunca foi realmente difĆ­cil para os homens. Da mesma forma, Ć© Pecado quem dĆ” origem Ć  Morte ā€“ o tipo de maldade que Milton entende por pecado Ć© o assassinato da alma. Envolver-se no pecado, comprometer-se totalmente com o mal, Ć© matar tudo o que Ć© humano, tudo o que hĆ” de bom em nossas almas. A carreira de SatanĆ”s no poema ilustra o significado do Pecado e da Morte. SatanĆ”s, criado por Deus, Ć© ordenado pela natureza para conhecer a verdade e ser bom. Ele demonstra sua afinidade natural pelo bem e pela verdade por seu horror ao ver pela primeira vez o Pecado e a Morte nos portƵes do Inferno. Eles sĆ£o feios, e SatanĆ”s estĆ” tĆ£o consciente de sua feiura que precisa ser persuadido antes de poder reconhecĆŖ-los como sua responsabilidade e aceitĆ”-los como seus prĆ³prios filhos ā€“Ā esta reaĆ§Ć£o serĆ” contrastada quando no Livro IV SatanĆ”s vĆŖ AdĆ£o e Eva pela primeira vez.


Livro III: Passagem das trevas do Inferno para a luz do CĆ©u, enquanto Deus, o Pai, vĆŖ SatanĆ”s em sua jornada em direĆ§Ć£o Ć  Terra. O Pai prediz que SatanĆ”s estĆ” empenhado em vinganƧa e conseguirĆ” corromper AdĆ£o e Eva, tentando-os Ć  desobediĆŖncia. Apesar de Seu conhecimento prĆ©vio da queda deles, Deus reconhece que o homem carrega a culpa porque foi criado o suficiente para permanecer de pĆ©, mas livre para cair. Deus deixa claro que a humanidade Ć© livre porque a obediĆŖncia sĆ³ Ć© sinal de amor e fonte de prazer quando Ć© dada gratuitamente.


No Livro I, Milton anunciou que o tema principal de seu poema era ā€œesclarecer os caminhos de Deus ao homemā€, e comeƧa a apresentĆ”-lo aqui. Em primeiro lugar, Deus nĆ£o Ć© responsĆ”vel pela queda nem dos anjos nem dos homens. Ele lhes deu o dom do livre arbĆ­trio. Ele lhes disse o que deveriam fazer e ofereceu-lhes a graƧa que os capacita a cumprir Seus mandamentos. O perigo do livre arbĆ­trio Ć© que quem Ć© livre para escolher Ć© livre para escolher mal. No entanto, negar um dom tĆ£o grande Ć s Suas criaturas seria certamente menos generoso da parte de Deus do que conceder-lhes o livre arbĆ­trio, mesmo sabendo que este serĆ” abusado.


O Pai declara diante do Filho e de todos os anjos que o homem cairĆ” e merecerĆ” justamente a morte, que sĆ³ poderĆ” ser evitada se outro se oferecer para morrer no lugar do homem. Deus nĆ£o fecha Seus olhos ou ouvidos Ć s oraƧƵes, ao arrependimento e Ć  obediĆŖncia dos caĆ­dos. Ele tambĆ©m enviarĆ” Sua ā€œconsciĆŖncia Ć”rbitroā€ para guiar o homem Ć  salvaĆ§Ć£o. Mas a justiƧa de Deus exige que o castigo pela queda do homem seja a morte. O homem pode se arrepender, mas somente atravĆ©s da graƧa de Deus. Para que o homem seja perdoado, outro deve receber o seu castigo. Quando Deus pergunta se esse tipo de amor existe no cĆ©u, todos os anjos ficam sentados em silĆŖncio. Mas depois deste silĆŖncio dramĆ”tico, o Filho voluntaria-se para morrer em nome do homem e para cumprir a justiƧa, a misericĆ³rdia e o amor de Deus. O Filho escolhe livremente obedecer Ć  vontade do Pai e exemplifica a liberdade adequada. O CĆ©u se enche de admiraĆ§Ć£o pelo amor expresso pelo Filho ā€“Ā a essĆŖncia da liberdade Ć© a obediĆŖncia, a essĆŖncia da obediĆŖncia Ć© o sacrifĆ­cio.


A redenĆ§Ć£o do homem Ć© a maneira mais Ć³bvia pela qual o bem surge do mal de SatanĆ”s, esclarecendo, mais uma vez, os caminhos de Deus para os homens. Mas a possibilidade de que o bem possa surgir do mal se os homens cooperarem com Deus aparece no poema tambĆ©m de outras maneiras. Por exemplo, a oraĆ§Ć£o de Milton Ć  Luz (um dos nomes tradicionais para o EspĆ­rito Santo) nĆ£o Ć© apenas um apelo comovente de um homem cego. EstĆ” significativamente relacionado ao tema do poema. A cegueira de Milton Ć© um mal inegĆ”vel. Mesmo assim, ele pede que Deus o ajude a transformar isso em algo bom. Ele nĆ£o pode ver o mundo fĆ­sico. Portanto, com a graƧa de Deus, Sua ā€œLuz Celestialā€, Milton pede permissĆ£o para ver ainda melhor do que os outros podem ā€“Ā porque ele se aproximarĆ” dela sem distraĆ§Ć£o, a verdade que sĆ³ pode ser vista espiritualmente.


A comparaĆ§Ć£o entre a reuniĆ£o no CĆ©u e no InfernoĀ se destaca pelas diferenƧas: (a) apenas os principais demĆ“nios participaram da reuniĆ£o no Inferno, ao passo que toda a hoste celestial estĆ” presente na reuniĆ£o de Deus; (b) nenhuma das manipulaƧƵes praticadas por SatanĆ”s Ć© necessĆ”ria, jĆ” que Deus declara Seu prĆ³prio caso; (c) quando Ele pede um voluntĆ”rio para aceitar a morte para que os homens possam viver, nĆ£o Ć© necessĆ”rio interromper abruptamente a reuniĆ£o depois que o Filho se voluntaria, pois ninguĆ©m no CĆ©u tentaria roubar a glĆ³ria do Filho. SatanĆ”s pode pensar que hĆ” inveja no CĆ©uā€“ como ele disse no seu primeiro longo discurso no Livro II, mas agora que ele se foi daquelas regiƵes estreladas, a inveja tambĆ©m se foi, ela o seguiu atĆ© o Inferno.


Milton retorna para SatanĆ”s quando ele chega ao nosso sistema solar prĆ³ximo dos limites com o CĆ©u. Os degraus do CĆ©u descem diante dele (Deus novamente ajuda SatanĆ”s) e SatanĆ”s os sobe para ter uma visĆ£o melhor da Terra. Ele avista o sol e voa em direĆ§Ć£o a ele, onde descobre Uriel, o anjo de visĆ£o mais aguƧada do CĆ©u, de olho na nova criaĆ§Ć£o. Antes que Uriel o aviste, SatanĆ”s se transforma em um querubim. Quando Uriel o ouve e se vira, SatanĆ”s finge que estĆ” apenas ansioso para ver a mais nova criaĆ§Ć£o de Deus. Uriel, enganado, aponta o caminho para o Ɖden.


Livro IV: Em contraste com a sua retĆ³rica pĆŗblica arrogante, o discurso privado de SatanĆ”s Ć© muito mais honesto. SatanĆ”s admite que nĆ£o pode escapar do InfernoĀ ā€“ ā€œWhich way I fly is Hell; myself am Hell.ā€. Ele fica magoado com a lembranƧa de sua antiga glĆ³ria e reconhece que ofendeu a Deus. Deus nĆ£o merecia a desobediĆŖncia que SatanĆ”s incitou. Mas SatanĆ”s culpa Deus pelo seu prĆ³prio orgulho e ambiĆ§Ć£o porque Deus o tornou glorioso ā€“ SatanĆ”s confirma muito do que Deus disse no Livro III, pois ele escolheu o mal livremente. SatanĆ”s conclui: ā€œAll good to me is lost; Evil, be thou my good".


SatanĆ”s chega ao Ɖden e finalmente consegue vislumbrar AdĆ£o e Eva. Ele fica maravilhado ao vĆŖ-los, reconhece sua beleza e atĆ© pensa consigo mesmo que poderia amĆ”-los. Mas ele nĆ£o vacila na sua missĆ£o de destruĆ­-los e tem prazer em pensar que a existĆŖncia feliz de AdĆ£o e Eva no Jardim chegarĆ” em breve ao fim. Sem ser visto por AdĆ£o e Eva, SatanĆ”s ouve AdĆ£o lembrar a Eva que Deus emitiu apenas uma ordem que eles devem obedecer: nĆ£o comer o fruto da Ɓrvore do Conhecimento do Bem e do Mal. SatanĆ”s considera a ordem de Deus irracional e conclui que AdĆ£o e Eva obedecem a Deus apenas por ignorĆ¢ncia. Ele decide que este Ć© um caminho para tentar AdĆ£o e Eva e seduzi-los Ć  desobediĆŖncia.


Milton compreende a psicologia do pecado: SatanĆ”s, criado por Deus, possui uma natureza que reconhece a verdade e anseia pelo bem. Assim, quando pratica o mal, ele violenta, antes de tudo, a sua prĆ³pria natureza. Na verdade, ele age contra si mesmo em um grau tĆ£o grande que precisa destruir o que deveria amar. O pecado leva Ć  loucura, explicando o aspecto demente do presente comportamento social ā€“ presentemente somos uma sociedade caĆ­da no pecado.


Os anjos de Deus patrulham o Ɖden e dois deles descobrem SatanĆ”s ā€œagachado como um sapoā€ sussurrando no ouvido de Eva enquanto ela dorme. SatanĆ”s Ć© levado diante de Gabriel, o lĆ­der do grupo angĆ©lico. Gabriel questiona SatanĆ”s e prova as falĆ”cias de seus argumentos. As desculpas de SatanĆ”s caem por terra quando ele se revela um mentiroso, nĆ£o um lĆ­der. SatanĆ”s fica furioso e quer lutar contra Gabriel, mas os pressĆ”gios nas estrelas predizem a vitĆ³ria de Gabriel, e SatanĆ”s foge.


A autodestruiĆ§Ć£o de SatanĆ”sĀ Ć© simbolizada pelas formas que ele assume. No final do Livro III, ele se disfarƧou de querubim, um anjo menor. Depois de saltar para o Jardim, ele se senta na Ɓrvore da Vida na forma de um cormorĆ£o. Para observar AdĆ£o e Eva mais de perto, ele assume a forma de um leĆ£o e depois de um tigre. E quando SatanĆ”s sussurra no ouvido de Eva enquanto ela dorme, ele se reduziu a um sapo. Observe a progressĆ£o: do arcanjo ao querubim, ao pĆ”ssaro, ao animal, ao sapo. Cada mudanƧa o traz para mais perto da terra, mais baixo na escala espiritual. Ele nĆ£o percebe que, quando escolhe ser um sapo, torna impossĆ­vel para si mesmo voltar a ser um arcanjo.


O Livro IV corrige, assim como o resto do poema, os fatos que SatanĆ”s distorceu. Ele Ć© dado a gabar-se da sua coragem, da sua sinceridade, da forma como sempre defendeu destemidamente os seus direitos. A imagem do nobre rebelde fica manchada quando percebemos que SatanĆ”s Ć© astuto. Depois de ter expressado a inveja venenosa que o amor entre AdĆ£o e Eva despertou, ele se afasta com desdĆ©m, mas ā€œcom astuta circunspecĆ§Ć£oā€. E Gabriel nos diz que SatanĆ”s, ao planejar sua rebeliĆ£o, tambĆ©m era astuto. Ele nĆ£o falou com ousadia, como gostaria que pensĆ”ssemos; ele se encolheu e bajulou a Deus, na esperanƧa de enganĆ”-lo. Na sua conversa com Gabriel, ouvimos SatanĆ”s dizer o tipo de coisa que um delinquente juvenil diria. Ele diz que aqueles que permaneceram fiĆ©is a Deus permaneceram fiĆ©is porque a obediĆŖncia era o caminho mais fĆ”cil e covarde. Ɖ assim que uma crianƧa de nove anos provoca outra crianƧa de nove anos para que fume: ā€œVocĆŖ serĆ” um maricas se nĆ£o fumar!ā€ Ɖ interessante notar, tambĆ©m, que SatanĆ”s, como a maioria dos pecadores, vĆŖ o pecado que o assedia em todos os lugares. Ele estĆ” obcecado pela inveja. Por ser assim, ele distorcidamente vĆŖ a proibiĆ§Ć£o de Deus a AdĆ£o e Eva como um ato de inveja. Quando ouve falar da lei, ele estĆ” tĆ£o possuĆ­do pelo mal que, apesar da sua inteligĆŖncia natural, nĆ£o consegue perceber o que realmente significa aquela restriĆ§Ć£o.


A representaĆ§Ć£o do ParaĆ­so de Milton Ć© tocantemente bela, mas de alguma forma condenada. Somos constantemente lembrados de que AdĆ£o e Eva nĆ£o desfrutarĆ£o da paz por muito tempo. Em primeiro lugar, existe a presenƧa de SatanĆ”s. Em segundo lugar, a Ɓrvore da Vida estĆ” ao lado da Ɓrvore do Conhecimento do Bem e do Mal, e nunca podemos esquecer o que essa Ć”rvore representa. Mais sutilmente, os animais mencionados como amigĆ”veis ā€‹ā€‹com AdĆ£o e Eva sĆ£o aqueles que sĆ£o mais hostis agora ā€“ tigres, leƵes, leopardos, etc. E no final da cena idĆ­lica em que os animais procuram divertir o casal humano, nĆ³s vemos a serpente, cuja forma SatanĆ”s assumirĆ” quando tentar AdĆ£o e Eva. Cada declaraĆ§Ć£o sobre a doƧura da vida no ParaĆ­so tende, entĆ£o, a lembrar-nos das condiƧƵes em que vivemos agora. Quando Milton diz que no ParaĆ­so se encontrou ā€œwithout thorn the roseā€, nĆ£o podemos deixar de pensar nos espinhos que encontramos agora.


HĆ” tambĆ©m um prenĆŗncio na representaĆ§Ć£o de AdĆ£o e Eva. O primeiro discurso de AdĆ£o (lĆ­der, protetor) Ć© sobre a restriĆ§Ć£o que Deus lhes impĆ“s. E ele estĆ” dizendo que nĆ£o tem intenĆ§Ć£o de quebrar essa regra. Mas uma forma de ficar tentado a quebrar regras Ć© pensar muito nelas. Como os dois nĆ£o estĆ£o nem perto da Ć”rvore, o discurso sugere que a Ć”rvore estĆ” ocupando demais a mente de AdĆ£o. O prenĆŗncio em relaĆ§Ć£o a Eva (companheira, suporte) Ć© muito mais evidente. Ao contar sobre seu primeiro dia de sua vida, ela demonstra seu ponto fraco: a vaidade ā€“ ela quase se apaixonou pela prĆ³pria imagem no lago. Ela Ć© salva desse narcisismo fatal pela voz de Deus. Mas o incidente serve para nos aleratr que ela pode ser influenciada pela vaidade.


A posiĆ§Ć£o de AdĆ£o e Eva no ParaĆ­so Ć© muito semelhante Ć  de SatanĆ”s antes da sua queda. SatanĆ”s era o mais elevado dos anjos, precisando obedecer apenas a Deus e a Seu Filho. AdĆ£o Ć© a criatura mais elevada da terra, precisando obedecer apenas a Deus. A sua obediĆŖncia assume uma forma especĆ­fica: nĆ£o comer do fruto da Ɓrvore do Conhecimento do Bem e do Mal. SatanĆ”s pensa que Deus fez a restriĆ§Ć£o por inveja. Mas desde que SatanĆ”s ā€“ como ele ele mesmo admite em seu longo discurso no inĆ­cio do Livro IV ā€“Ā entendeu mal suas prĆ³prias obrigaƧƵes no CĆ©u, talvez ele tambĆ©m entenda mal as de AdĆ£o. Em primeiro lugar, a restriĆ§Ć£o nĆ£o Ć© contra o conhecimento como tal, pois AdĆ£o, como veremos mais tarde, Ć© encorajado a conhecer e saber. A Ć”rvore diz respeito a um conhecimento particular: o conhecimento do bem e do mal. Como alguĆ©m conhece a diferenƧa entre o bem e o mal? SatanĆ”s, no poema, demonstra como. NinguĆ©m pode conhecer o mal tĆ£o bem como ele, nem ninguĆ©m pode saber tĆ£o bem o quanto ele difere do bem. E este conhecimento vem do fato de ter feito o mal. A restriĆ§Ć£o, entĆ£o, entendida Ć  luz da experiĆŖncia de SatanĆ”s ā€“Ā e tambĆ©m da experiĆŖncia da maioria dos seres humanos ā€“, significa simplesmente que Deus ordenou a AdĆ£o e Eva que nĆ£o praticassem o mal. Eles nĆ£o devem desejar o tipo de conhecimento que sĆ³ podem obter atravĆ©s do pecado. E quando vemos quais foram as consequĆŖncias de tal conhecimento para SatanĆ”s, entendemos que nĆ£o Ć© um conhecimento invejĆ”vel.


Livro V: AdĆ£o acorda e encontra Eva ainda num sono agitado. Quando ele a acorda, ela lhe conta sobre seu sonho angustiante. O sonho de EvaĀ Ć© outro artifĆ­cio que Milton usa para prenunciar o drama que se aproxima. Explica os efeitos da tentativa do Diabo de corrompĆŖ-la enquanto ela dormia. TambĆ©m apresenta uma prĆ©via de sua cena da tentaĆ§Ć£o. Observar o apelo Ć  sua vaidade, quando SatanĆ”s lhe diz que ela Ć© a criatura para quem todas as estrelas brilham e por quem todos os seres celestiais estĆ£o esperando.


ApĆ³s a oraĆ§Ć£o matinal de AdĆ£o e Eva, Deus envia Rafael para avisĆ”-los do perigo. Quando caĆ­rem, nĆ£o poderĆ£o dizer que nĆ£o foram avisados. Os acontecimentos apĆ³s a Queda mostrarĆ£o que o aviso de Deus Ć© de fato uma bondade para com AdĆ£o e Eva, embora pareƧa simplesmente aumentar a responsabilidade por seus pecados.


O relato de Rafael sobre a rebeliĆ£o de SatanĆ”sĀ apresenta novas correƧƵes das mentiras deste. SatanĆ”s nĆ£o se levantou com ousadia, como disse, pela liberdade. A primeira sombra de pecado que entrou em sua mente o tornou hipĆ³crita e astuto. Ele fingiu obediĆŖncia ao decreto de Deus e depois fugiu com seus seguidores por medo da represĆ”lia divina. Nem Deus temeu pelo Seu trono diante das ameaƧas de SatanĆ”s, como SatanĆ”s afirmou em seus discursos no PandemĆ“nio. Deus e o Filho receberam a notĆ­cia da rebeliĆ£o com sorrisos irĆ“nicos, sabendo que seu poder poderia facilmente derrubar o rebelado.


O verdadeiro herĆ³i da cena Ć© Abdiel, o Ćŗnico membro das legiƵes de SatanĆ”s que tem a integridade e a coragem para enfrentar sozinho o erro. Ele Ć© uma invenĆ§Ć£o de Milton, e Ć© evidente que o autor admira a personagem. Abdiel, alĆ©m disso, Ć© exatamente o que SatanĆ”s gostaria que acreditĆ”ssemos que ele, SatanĆ”s, Ć©. Abdiel Ć© verdadeiramente ousado, verdadeiramente independente, verdadeiramente capaz de exercer a liberdade de que SatanĆ”s tanto fala. Ele estĆ” completamente livre da necessidade de estar bem diante de seus semelhantes. Ele segue a sua consciĆŖncia, nĆ£o a opiniĆ£o pĆŗblica. Lembrar, em contraste, do solilĆ³quio de SatanĆ”s no inĆ­cio do Livro IV quando ele admite ter vergonha de se arrepender por causa do que seus seguidores diriam. Ser influenciado desta forma Ć© seguir, nĆ£o liderar. A presenƧa de Abdiel serve para nos lembrar o quĆ£o mesquinho SatanĆ”s realmente Ć©, apesar do esplendor da sua retĆ³rica.


A recusa de SatanĆ”s em obedecer a Deus leva-o imediatamente ao absurdo lĆ³gico e tambĆ©m Ć  hipocrisia. Ele afirma ser ā€œself-createdā€. NĆ£o Ć© preciso acreditar num Deus criador para reconhecer que tal afirmaĆ§Ć£o Ć© impossĆ­vel. Para poder criar a si mesmo, SatanĆ”s teria que existir antes de ter sido criado, existir antes de ser trazido Ć  existĆŖncia ā€“ uma situaĆ§Ć£o na qual ele se coloca como Deus.


Milton Ć© ambĆ­guo em sua apresentaĆ§Ć£o da SantĆ­ssima Trindade. Muitos comentaristas consideram que Milton nĆ£o acreditava de forma alguma na Trindade. Ele acreditava, segundo eles, que Deus Ć© uma Ćŗnica pessoa e que Cristo nĆ£o Ć© realmente Deus feito homem, mas sim um homem cuja virtude singular o tornou capaz de se tornar Deus. Quer tal interpretaĆ§Ć£o do pensamento de Milton seja verdadeira ou nĆ£o, Milton tem o cuidado de expressar a doutrina em ParaĆ­so PerdidoĀ na maior parte de acordo com as posiƧƵes cristĆ£s tradicionais. Assim, quando o Pai no Livro V declara que Ele hoje ā€œgerouā€ Seu Filho, Ele nĆ£o quer dizer que o Filho nĆ£o existia antes. Tal posiĆ§Ć£o teria sido extremamente herĆ©tica, pois teria negado qualquer possibilidade de igualdade entre o Pai e o Filho. A palavra ā€œgeradoā€ significa, em vez disso, que Deus estĆ” naquele dia gerando Seu Filho como Rei, declarando-O como o Messias. A existĆŖncia anterior do Filho Ć© provada pela afirmaĆ§Ć£o de Abdiel de que foi por meio do Filho que os anjos foram criados.


Livros VI-VIII: Rafael segue seu relato ensinando AdĆ£o sobre a batalha no CĆ©u (livro VI), a criaĆ§Ć£o do Ɖden (livro VII), e sobre a aquisiĆ§Ć£o de conhecimento (livro VIII). Quando Abdiel retorna para Deus, ele Ć© elogiado por sua decisĆ£o corajosa de defender sozinho a verdade contra os anjos rebeldes. SatanĆ”s reĆŗne suas forƧas para a batalha. Abdiel o confronta novamente antes do inĆ­cio da luta. Abdiel chama SatanĆ”s de tolo por pensar que pode derrotar Deus na batalha. SatanĆ”s acusa Abdiel de preferir o servilismo Ć  liberdade, e Abdiel responde que a liberdade consiste na obediĆŖncia a Deus ā€“ sĆ£o os rebeldes que sĆ£o escravizados. A verdeira liberdade Ć© vencer os desejos ilegĆ­timos, a pior escravidĆ£o Ć© sujeitar-se as pulsƵes ā€“ a luta pela liberdade Ć© uma batalha interior. Abdiel o atinge com um golpe que faz SatanĆ”s recuar dez passos e cair sobre um joelho. SatanĆ”s e os anjos rebeldes estĆ£o consternados com o facto de um anjo aparentemente inconsequente como Abdiel poder desferir um golpe tĆ£o poderoso contra o seu lĆ­der. SatanĆ”s se considerava igual a Deus, mas Ć© humilhado por um anjo menor.


Abdiel diz a SatanƔs: "Reign thou in Hell, thy kingdom; let me serve In Heaven God ever blest."


Esta fala remete Ć s palavras de SatanĆ”s no Livro I (ā€œBetter to reign in Hell than serve in Heaven.ā€), estabelecendo Abdiel como o herĆ³i que SatanĆ”s gostaria de ser.


A guerra continua entre os anjos fiĆ©is e rebeldes por dois dias, sem nenhuma vitĆ³ria decisiva. Deus declara que o terceiro dia de batalha pertence a Cristo. Cristo diz aos anjos de Deus para se afastarem e deixĆ”-Lo lutar sozinho contra o exĆ©rcito rebelde. O Filho exerce menos da metade de Seu poder, mas os anjos rebeldes largam suas armas e se lanƧam do CĆ©u ao Inferno para escapar Dele. Rafael avisa AdĆ£o que esta derrota Ć© a raiz da raiva e da inveja de SatanĆ”s, animando seu desejo malĆ©volo de tentar AdĆ£o Ć  desobediĆŖncia e arruinar seu estado feliz.


Os eventos do Livro VII representam a primeira vez que Deus faz o bem mediante um mal. Derrotar SatanĆ”s teria sido apenas uma vitĆ³ria negativa. Deus teria ficado apenas mais pobre com a derrota de SatanĆ”s. Mas Ele usa a rebeliĆ£o de SatanĆ”s como uma razĆ£o para criar um novo mundo, um mundo que arranca mais territĆ³rio das garras do Caos e difunde a novos reinos a bondade de Deus. TerĆ” de haver uma conquista comparĆ”vel apĆ³s a queda de AdĆ£o, ou SatanĆ”s terĆ” vencido o segundo turno da sua batalha com Deus.


AdĆ£o pede a Rafael que lhe ensine sobre a criaĆ§Ć£o do mundo e sua prĆ³pria criaĆ§Ć£o. Rafael aprova este desejo de AdĆ£o por conhecimento ā€“ obtĆŖ-lo ajudarĆ” AdĆ£o a glorificar a Deus e a aumentar sua prĆ³pria felicidade. Mas o desejo de AdĆ£o por conhecimento deve ser mantido ā€œdentro dos limitesā€. Rafael compara conhecimento Ć  comida. AdĆ£o deve controlar seu apetite. Rafael conta a AdĆ£o sobre a criaĆ§Ć£o do mundo, das criaturas e do homem, o ā€œmasterworkā€ de Deus. Em contraste com os animais, o homem foi feito de pĆ©, dotado de razĆ£o e dotado da capacidade de autoconhecimento e de piedade a Deus. AdĆ£o pergunta a Rafael sobre os movimentos celestiais e Rafael o adverte a ā€œser humildemente sĆ”bioā€ e nĆ£o se preocupar com assuntos muito acima de suas possibilidades. Os grandes mistĆ©rios estĆ£o acima da capacidade humana. A busca do conhecimento fora do nosso alcance Ć© uma perversĆ£o dos desejos evolutivos, uma exaltaĆ§Ć£o desarmĆ“nica dos desejos levada a ideal de perfeiĆ§Ć£o. (influĆŖncia do monstro Equidna na mitologia grega)


AdĆ£o tem uma consciĆŖncia intuitiva do fato de que ele nĆ£o pode ter criado a si mesmo e que, como nĆ£o o fez, deve aĆ§Ć£o de graƧas e adoraĆ§Ć£o a quem o fez ā€“ contrastando com a ostentaĆ§Ć£o de autocriaĆ§Ć£o de SatanĆ”s. Observar tambĆ©m que AdĆ£o sabe que estĆ” muito abaixo de Deus, tĆ£o abaixo Dele que nĆ£o consegue compreender Sua natureza. Assim, embora AdĆ£o possa nomear os animais, ele nĆ£o pode dar nome a Deus, pois o ato de nomear implicaria igualdade ou superioridade sobre a coisa nomeada. A sabedoria de AdĆ£o em reconhecer a sua incapacidade de dar um nome ao seu Criador tambĆ©m contrasta com a tentativa de SatanĆ”s de provar que ele Ć© igual a Deus.


O AdĆ£o nĆ£o-caĆ­do representa o ideal de conhecimento humano de Milton. AdĆ£o compreende facilmente muitas coisas que achamos difĆ­ceis de aprender. A maioria dos estudantes de biologia, por exemplo, acharia o conhecimento de AdĆ£o sobre os animais e suas naturezas realmente invejĆ”vel. AlĆ©m disso, ele se entende. Ele vĆŖ tĆ£o bem seu relacionamento com Deus que sabe que Ć© obrigado a obedecĆŖ-Lo. Ele aprende facilmente. E o seu conhecimento Ć© obviamente a sua caracterĆ­stica mais desejĆ”vel. Deus demonstra prazer em testĆ”-lo, e expressa Sua alegria na inteligĆŖncia de AdĆ£o e na coragem que o conhecimento lhe dĆ”.


Pouco antes da partida de Rafael, AdĆ£o confidencia que a beleza de Eva desperta paixƵes dentro dele a tal ponto que domina sua autoridade e razĆ£o. Rafael, preocupado, diz a AdĆ£o para nĆ£o culpar a beleza de Eva ā€“Ā ou a Natureza ā€“ pela sua fraqueza. Ele deve governar suas paixƵes.


AdĆ£o pensa, com razĆ£o, que a melhor coisa que Deus lhe deu foi Eva. Quando ele conta o primeiro encontro, ele Ć© muito mais gentil com ela do que ela consigo mesma. No prĆ³prio relato de sua criaĆ§Ć£o no Livro IV, ela se culpa pela vaidade que a fez preferir temporariamente sua prĆ³pria imagem a AdĆ£o. AdĆ£o vĆŖ o outro lado dessa vaidade. Ele vĆŖ a hesitaĆ§Ć£o dela como um desejo de ser cortejada. AdĆ£o diz que Eva conhecia seu prĆ³prio valor e, sabendo disso, sabia que nĆ£o deveria se entregar levianamente. Ɖ a maneira de uma mulher fazer com que seu amante saiba que a entrega de si mesma Ć© um presente de alto valor. As opiniƵes de AdĆ£o e Eva estĆ£o certas. Ela precisa se valorizar, mas nĆ£o se valorizar acima de AdĆ£o. Se o fizesse, significaria que ela escolheu a esterilidade da auto-adoraĆ§Ć£o em vez da fecundidade do casamento. O perigo surge quando seu respeito prĆ³prio se transforma em vaidade. AtĆ© agora, a perigosa vaidade foi apenas prenunciada. Eva ainda nĆ£o cedeu.


O Livro VIII prenuncia a queda de AdĆ£o, pois apresenta sua fraqueza. O pecado de AdĆ£o, segundo Milton, Ć© o amor excessivo pela esposa. Obviamente ele nĆ£o condena o amor entre marido e mulher como demonstrado em todo o Ć©pico, principalmente nos livros IV e VIII. O que Milton considera errado Ć© oĀ amor baseado na paixĆ£o. AdĆ£o diz que ama tanto Eva que sua razĆ£o Ć© temporariamente superada por sua paixĆ£o por ela. A confissĆ£o de AdĆ£o sobre o quanto a ama nos alerta sobre a brecha que aparecerĆ” em sua armadura.


Outra sugestĆ£o das limitaƧƵes de AdĆ£o surge em sua tentativa de culpar a natureza ou Deus por sua fraqueza. Ao confessar seu amor quase excessivo por Eva, ele sugere a Rafael que a Natureza o tornou muito fraco ou Eva muito bonita. O desejo de AdĆ£o de colocar a culpa por suas falhas em algoĀ alĆ©m deleĀ ficarĆ” ainda mais evidente conforma avanƧa o Ć©pico.


Livro IX: SatanĆ”s retorna ao Ɖden e fica impressionado com a bondade e a beleza do Jardim, mas sua incapacidade de participar dele o atormenta. Ele decide que seu Ćŗnico remĆ©dio Ć© arruinĆ”-lo. Ele escolhe a serpente como o artifĆ­cio atravĆ©s do qual enganarĆ” AdĆ£o e Eva. Sua ā€œfoul descentā€ atĆ© a forma de uma serpente fere seu orgulho, mas sua ambiĆ§Ć£o de vinganƧa supera este orgulho. SatanĆ”s toma sua forma mais baixa (perde todos os resquĆ­cios do anjo que foi), seu discurso Ć© incoerente, e ele mente para si mesmo.


Eva propƵe a AdĆ£o que dividam seu trabalho para serem mais produtivos, mas AdĆ£o resiste. ƀ luz do aviso de Rafael sobre SatanĆ”s, AdĆ£o acha que eles deveriam permanecer juntos. Ele se sente encorajado pela presenƧa dela e acredita que eles terĆ£o mais chances contra o Tentador se permanecerem juntos. Mas AdĆ£o se recusa a ordenar que Eva fique e deixa a decisĆ£o para ela. Eva demonstra inexperiĆŖncia, ingenuidade e ignorĆ¢ncia ao decidir pela separaĆ§Ć£o (desejada pela Serpente) para poder provar sua virtude testando-a.


A SerpenteĀ lisonjeia a beleza de Eva e tenta despertar nela o desejo de ser uma deusa. A Serpente diz a Eva que ganhou o poder da fala ao provar o fruto de uma certa Ć”rvore.

Quando Eva vĆŖ que Ć© a Ɓrvore do Conhecimento, diz Ć  Serpente que estĆ” proibida de comer o fruto daquela Ć”rvore. A Serpente insiste que Deus proibiu o fruto para evitar que se tornassem deuses ā€“ para mantĆŖ-los humildes e ignorantes. Eva cede Ć  tentaĆ§Ć£o, colhe um fruto da Ɓrvore e o come. Eva sente-se superior, confundindo inebriamento com sabedoria. O ponto alto de sua tolice ocorre quando ela, que pretendia se tornar uma deusa, se ajoelha para adorar a Ć”rvore como um deus. Ela perdeu a consciĆŖncia de que Ć© muito mais elevada na natureza do que uma Ć”rvore (perfeito retrato dos hodiernos adoradores de Gaia).


Assim que AdĆ£o entende o que aconteceu, debate consigo mesmo se deveria deixar Eva enfrentar a morte sozinha, mas nĆ£o consegue suportar a ideia de viver sem ela. Eva garante a ele que comer da Ɓrvore do Conhecimento abriu-lhe os olhos, animou-lhe os sentidos e infundiu-lhe novas esperanƧas e sonhos (soa como uma viciada em drogas). AdĆ£o, ā€œagainst his better knowledgeā€, aceita a oferta de Eva de provar o fruto, e a terra estremece. AdĆ£o e


Eva experimentam felicidade momentĆ¢nea depois de comerem a fruta ā€“ eles ficam ā€œintoxicatedā€ e ā€œfeel divinity within them breeding wingsā€ ā€“ mas ela se manifesta primeiro como luxĆŗria um pelo outro (no lugar do amor). Na manhĆ£ seguinte, eles acordam envergonhados (a prĆ”tica do mal traz a vergonha) e descobrem que sua paz interior se foi ā€“Ā ā€œthe force of the fallacious fruit,Ā [...] was now exhaledā€ (o prazer ilegĆ­timo evai-se facilmente). Eles choram e culpam um ao outro pelo que aconteceu. Nenhum dos dois aceita a responsabilidade por sua desobediĆŖncia ā€“Ā nĆ£o hĆ” mais amor entre eles.


No final do Livro IX, AdĆ£o e Eva estĆ£o a caminho de se tornarem parte do reino de SatanĆ”s. Se nada acontecer para restaurar o amor entre eles, tudo o que conseguirĆ£o produzir serĆ” a esterilidade ā€“ AdĆ£o, Eva e Nada seriam uma trindade muito mais profana do que sagrada.


Livro X: Deus envia o Filho ao Jardim para julgar AdĆ£o e Eva. Cristo repreende AdĆ£o por obedecer a Eva em vez de a Deus. Eva explica que a Serpente a enganou para que comesse o fruto proibido. O Filho amaldiƧoa a Serpente e prediz que ā€œseedĀ (de Eva) shall bruiseā€ a cabeƧa da Serpente. O Filho informa a AdĆ£o e Eva que a vida apĆ³s a Queda mudarĆ” para pior. Eva sentirĆ” dores no parto. AdĆ£o terĆ” que trabalhar para obter alimento. Mas o Filho tambĆ©m mostra misericĆ³rdia. Ele prenuncia o Evangelho ao assumir a forma de um servo para vestir a nudez exterior deles com peles e a nudez interior com a Sua justiƧa.

Deus precisa da cooperaĆ§Ć£o dos homens para alcanƧar a vitĆ³ria completa sobre SatanĆ”s. O Filho nĆ£o pode se tornar Jesus Cristo, o Salvador da humanidade, se nĆ£o houver a raƧa humana na qual Ele possa nascer. E Ć© Cristo quem alcanƧarĆ” a vitĆ³ria final de Deus, como explicado no Livro III.


SatanĆ”s retorna ao InfernoĀ e anuncia sua vitĆ³ria. Ele se regozija por ter sido capaz de seduzir o homem Ć  desobediĆŖncia e reivindicar um novo lar para os caĆ­dos. Em vez de aplausos retumbantes, SatanĆ”s Ć© saudado com sibilos pelos demĆ“nios. NĆ£o hĆ” mais nenhum resquĆ­cio de LĆŗcifer, a escolha pelo mal o destruiu. Todos os anjos caĆ­dos foram transformados em serpentes e sofrem de uma sede ardente. Um bosque carregado com os frutos proibidos do ParaĆ­so surge no Inferno. Os demĆ“nios mordem a fruta na esperanƧa de saciar a sede, mas ela se transforma em cinzas enquanto comem ā€“ aquele que se exaltava a si mesmo terminou humilhado. O fascĆ­nio que inicialmente SatanĆ”s provoca em muitos leitores se assemelha ao aspecto sedutor e convidativo dos pecados e vĆ­cios. E seu final aviltante remete ao destino do pecador.Ā 


AdĆ£o aceita a responsabilidade por suas aƧƵesĀ como a Ćŗnica fonte de corrupĆ§Ć£o e lhe dĆ³i saber que sua prole sofrerĆ” por causa de sua desobediĆŖncia. Embora ele ainda esteja zangado com Eva, ela tenta consolĆ”-lo. Ela chora aos seus pĆ©s e se oferece para retornar ao local de julgamento para assumir a responsabilidade exclusiva sobre si mesma. A pessoa que devolve a Trindade Humana ao domĆ­nio de Deus Ć© Eva, e ela o faz da Ćŗnica maneira possĆ­vel: atravĆ©s do amor. AdĆ£o reconcilia-se com Eva, mas reconhece que, embora cada um queira assumir todo o fardo da puniĆ§Ć£o para poupar o outro, eles sĆ£o incapazes de rescindir a puniĆ§Ć£o de Deus. Eva sugere que eles cometam suicĆ­dio para escapar do sofrimento, mas AdĆ£o lembra a Eva que hĆ” esperanƧa na promessa de Cristo de que sua semente esmagarĆ” a cabeƧa da Serpente. Eles retornam ao local do julgamento para confessar os seus pecados e buscar o perdĆ£o de Deus ā€“ sua humildade darĆ” testemunho da verdade das palavras de Cristo: ā€œQuem se humilha serĆ” exaltadoā€.


Livros XI-XII: ƀ medida que AdĆ£o e Eva se arrependem e oram, o Filho intercede junto ao Pai em favor deles. Ele pede ao Pai que O aceite como sacrifĆ­cio para que o homem se reconcilie com Deus. O Pai aceita a intercessĆ£o do Filho com alegria, mas as consequĆŖncias do pecado ainda devem seguir. AdĆ£o e Eva serĆ£o banidos do Jardim para nĆ£o comerem da Ɓrvore da Vida. Deus ordena que o arcanjo Miguel vĆ” ao Ɖden para fazer cumprir esta sentenƧa. Se AdĆ£o e Eva aceitarem sua sentenƧa com humildade, Deus autoriza Miguel a revelar Seus planos futuros a AdĆ£o para fortalecer sua fĆ©. Quando Miguel diz a AdĆ£o e Eva que eles devem deixar o Jardim, AdĆ£o teme ser banido da presenƧa de Deus. Miguel lhe garante que Deus estarĆ” com ele onde quer que ele vĆ”. AdĆ£o aceita o castigo, e Miguel o prepara para receber visƵes do que estĆ” por vir.


Miguel leva AdĆ£o ao topo da colina mais alta do ParaĆ­so. Os olhos de AdĆ£o foram ofuscados pela Queda (os vĆ­cios nos afastam da Verdade), Michael remove as nĆ©voas que obstruem sua visĆ£o e permite que AdĆ£o veja claramente. Miguel revelaĀ a AdĆ£o uma sequĆŖncia de eventos registrados nas Escrituras. AdĆ£o vĆŖ a dor e a morte que entrarĆ£o no mundo por causa de sua desobediĆŖncia, mas ele tambĆ©m vĆŖ seus descendentes permanecerem firmes na fĆ© e servirem a Deus. Miguel conta a AdĆ£o sobre os eventos que culminarĆ£o no nascimento de Jesus. AdĆ£o se pergunta sobre o imenso bem que Deus trarĆ” de sua prĆ³pria desobediĆŖncia. Antes de deixar o topo da colina, Miguel adverte AdĆ£o a acrescentar aƧƵes, fĆ©, virtude e amor ao seu conhecimento. Se AdĆ£o fizer isso, ele experimentarĆ” o paraĆ­so dentro de sua alma. Quando LĆŗcifer e seus seguidores caĆ­ram, eles decidiram ir contra Deus uma vez mais. AdĆ£o e Eva enfrentaram a queda com o arrependimento sincero e louvor a Deus.


A vitĆ³ria de Deus sobre SatanĆ”s, a Sua capacidade de extrair o bem do mal, Ć© manifestada no Livro XI. O Filho diz que as oraƧƵes humildes e arrependidas de AdĆ£o e Eva sĆ£o frutos da graƧa de Deus, um fruto mais agradĆ”vel do que qualquer outro que o ParaĆ­so antes da Queda pudesse produzir, pois as oraƧƵes sĆ£o melhores do que qualquer um dos atos que o casal humano realizou no seu estado de inocĆŖncia. AdĆ£o e Eva antes da Queda sĆ£o bons, mas demasiadamente pueris. Na sua queda, eles se tornaram crianƧas mĆ”s, mas em seu arrependimento eles alcanƧam novas alturas: eles amadurecem. AlĆ©m disto, O pecador pode desenvolver novas virtudes impossĆ­veis naquele estado de inocĆŖncia, e.g. tolerĆ¢ncia, compaixĆ£o, entendimento e caridade.


A experiĆŖncia de AdĆ£o e Eva tambĆ©m remete Ć  experiĆŖncia humana universal. Todos nĆ³s passamos da frĆ”gil inocĆŖncia da infĆ¢ncia, atravĆ©s da descoberta do mal, para a caridade que aceita as nossas prĆ³prias falhas e as dos nossos semelhantes. Isto Ć©, ascendemos para essa caridade se nos permitirmos aceitar, como fizeram AdĆ£o e Eva, as liƧƵes que a nossa fraqueza pode nos ensinar. Tal aceitaĆ§Ć£o sĆ³ Ć© possĆ­vel, diz Milton, porque Deus nos oferece a graƧa pela qual podemos compreender a nĆ³s mesmos e a Ele. Precisamos apenas escolher aceitar essa graƧa, como Eva escolhe aceitĆ”-la quando implora a AdĆ£o que a perdoe.


Num mundo caĆ­do, num mundo corrompido pelo pecado, a morte nĆ£o Ć© um mal, mas um bem. AdĆ£o e Eva devem deixar o ParaĆ­so, decreta Deus. No entanto, o decreto nĆ£o Ć© severo. Permitir que os dois permanecessem no Jardim para comer do fruto da Ɓrvore da Vida nĆ£o seria bondade, mas crueldade. A vida deles, contaminada pelo pecado e pela tristeza, precisa acabar. Viver imortalmente em tal estado seria intolerĆ”vel. AlĆ©m disso, a morte, para o homem bom, Ć© a entrada em um novo tipo de vida.


AdĆ£o ecoa a declaraĆ§Ć£o de Deus depois de ter aprendido com Miguel sobre as maneiras pelas quais os homens morrerĆ£o. Ele passa a saber que mesmo a vida mais moderada precisa terminar com a morte: os homens, sujeitos ao pecado, envelhecerĆ£o, perderĆ£o o vigor e a energia e, se viverem bem, estarĆ£o prontos para morrer. Uma ideia comparĆ”vel Ć© apresentada nas Viagens de GulliverĀ de Jonathan Swift, quando Gulliver visita a terra dos imortais Struldbrugs.


A histĆ³ria do mundo que Miguel mostra a AdĆ£o compreende o material dos capĆ­tulos IV a IX do Livro do GĆŖnesis. O Livro XI termina com outro exemplo de Deus extraindo o bem do mal: o resgate de NoĆ©, o Ćŗnico homem justo, e sua famĆ­lia na Arca, para que uma nova raƧa possa vir Ć  Terra com outra chance de viver em retidĆ£o. A Ćŗltima imagem do Livro XI Ć© o arco-Ć­ris, sĆ­mbolo tradicional de esperanƧa. Ɖ a alianƧa de Deus com NoĆ©, a Sua promessa de que Ele nunca mais destruirĆ” a humanidade. Os homens viverĆ£o na Terra atĆ© que o fim do mundo una o CĆ©u e a Terra.


O Livro XII continua a histĆ³ria do mundo iniciada no Livro XI, uma histĆ³ria que atinge o seu clĆ­max com o nascimento de Cristo. AdĆ£o dĆ” voz Ć  doutrina cristĆ£ da Queda Feliz: agora que sabe da vinda de Cristo, diz ele, nĆ£o sabe se deve chorar pelo seu pecado ou se alegrar por causa dele, pois a vinda de Cristo tornarĆ” possĆ­vel uma vida ainda mais elevada para os homens do que a inocĆŖncia de AdĆ£o poderia ter alcanƧado.


Milton sabe que a vinda de Cristo nĆ£o eliminou o pecado. O que fez foi ensinar aos homens que estĆ£o dispostos a aprender como viver num mundo onde muitos dos seus cidadĆ£os estĆ£o comprometidos com o mal. Cristo nĆ£o prometeu nenhuma utopia. Ele prometeu, antes, paz na Terra aos homens de boa vontade. Ele prometeu tornar possĆ­vel que tais homens vivam por meio da fĆ© e da graƧa em paz com Deus e consigo mesmos. Miguel explica a AdĆ£o como serĆ” essa paz: se AdĆ£o tiver fĆ©, virtude e caridade, nĆ£o precisarĆ” temer deixar o ParaĆ­so, pois ele possuirĆ” ā€œA paradise within happier farā€.


SatanĆ”s carregava o Inferno dentro de si, nĆ£o importa aonde ia, pois carrega consigo seu tormento. Mas AdĆ£o e Eva aprenderam que a sua paz e felicidade dependem deles prĆ³prios e nĆ£o do ambiente que os rodeia. O Jardim do Ɖden Ć© apenas um cenĆ”rio. Eles ficaram tĆ£o infelizes logo apĆ³s a queda quanto estavam felizes antes. Podem ter felicidade onde quer que estejam, uma felicidade mais segura do que a proporcionada pelo ParaĆ­so, se preservarem a sua obediĆŖncia a Deus e o seu amor um pelo outro.


Miguel fez Eva dormir durante a revelaĆ§Ć£o no topo da colina. Deus a visitou em seus sonhos e a consolou dizendo que a semente prometida dentro dela restauraria a humanidade. Miguel expulsaĀ a dupla para fora do Jardim. Choram pela perda, mas estĆ£o cheios de paz e esperanƧa no futuro por causa das promessas de Deus.


No final, AdĆ£o e Eva, de mĆ£os dadas, afastam-se do ParaĆ­so para construĆ­rem juntos o seu novo paraĆ­so. A paz e o amor que sentem um pelo outro e por Deus significam que a Trindade Humana nĆ£o serĆ” AdĆ£o, Eva e Nada, mas AdĆ£o, Eva e seus filhos vivos ā€“ e, em Ćŗltima anĆ”lise, a CrianƧa que Ć© o Cristo. O poema termina no ponto inicial da histĆ³ria bĆ­blica, que acaba de ser predita a AdĆ£o, agora Ć© um novo comeƧo:


"The world was all before them, where to choose Their place of rest, and Providence their guide: They, hand in hand, with wandering steps and slow, Through Eden took their solitary way."



Ā 


Notas


  • John Milton (1608-1674) nasceu em Londres, Inglaterra.

  • Poeta, ativista polĆ­tico e historiador, Milton Ć© considerado o autor inglĆŖs mais importante depois de William Shakespeare. Otto Maria Carpaux o considera o maior poeta inglĆŖs depois de Shakespeare.

  • Filosoficamente um materialista, Milton nĆ£o segue a doutrina cristĆ£ tradicional ā€“ ā€œMilton Ć© o Dante do protestantismo.ā€ (Carpeaux). Mas apesar de suas ideias pouco ortodoxas, Milton era um devoto.

  • Composto entre 1658 e 1664, ParaĆ­so Perdido, poema Ć©picoĀ em verso branco, Ć© uma das Ćŗltimas obras de John Milton, originalmente publicado em 10 livros em 1667 e, com os livros 7 e 10 divididos em duas partes, publicado em 12 livros na segunda ediĆ§Ć£o de 1674.

  • ParaĆ­so PerdidoĀ foi composto quando Milton jĆ” estava cego e proscrito da vida polĆ­tica. Nesta mesma Ć©poca ele havia encontrado o verdadeiro heroĆ­smoĀ na obediĆŖncia a Deus e na paciĆŖncia para aceitar o sofrimento sem perder a fĆ©.

  • Muitos estudiosos consideramĀ ParaĆ­so PerdidoĀ um dos maiores poemas da lĆ­ngua inglesa. Conta a histĆ³ria bĆ­blica da queda em desgraƧa de AdĆ£o e Eva (e, por extensĆ£o, de toda a humanidade) em uma linguagem que Ć© uma conquista suprema de ritmo e som. A estrutura de 12 livros, a tĆ©cnica de comeƧar in medias res, e a invocaĆ§Ć£o da musa sĆ£o de inspiraĆ§Ć£o clĆ”ssica. O assunto, no entanto, Ć© distintamente cristĆ£o.

  • Milton ecoa Dante e VirgĆ­lio, e.g. (a) No Livro I, grande parte da descriĆ§Ć£o do Inferno vem de Dante; (b) o discurso de SatanĆ”s que inspira falsas esperanƧas nos seus companheiros anjos caĆ­dos Ć© uma reescrita da exortaĆ§Ć£o de Eneias aos seus homens no Livro I da Eneida; e (c) outro eco virgiliano vem do panorama da histĆ³ria bĆ­blica dos dois Ćŗltimos livros do ParaĆ­so Perdido em comparaĆ§Ć£o com a visĆ£o da histĆ³ria romana dada a Eneias na Eneida.

  • Milton escreveu um poema complementar, Paradise Regained, em 1671, dramatizando a tentaĆ§Ć£o de Cristo.

  • Com SatanĆ”s, Pecado e Morte, Milton estabelece uma parĆ³dia da Divina Trindade ā€“ aquela destrĆ³i, enquanto esta cria. Seus membros unem-se no Ć³dio, enquanto os da Divina sĆ£o ligados pelo amor.

  • A teoria que AdĆ£o apresenta no Livro VII, quando questiona Rafael, Ć© a teoria ptolomaica, uma teoria que naturalmente atrai os homens porque confirma a evidĆŖncia de suas impressƵes sensoriais. Esta teoria, que sustentava que a Terra era o centro do universo e que o Sol e as estrelas giravam em torno da Terra, estava para ser desafiada no sĆ©culo XVII pela teoria copernicana. Rafael, na sua resposta Ć  pergunta de AdĆ£o, sugere esta teoria mais recente: que o Sol Ć© o centro do cosmos e que a Terra circunda o Sol.

  • Assim como o Filho Ć© gerado do Pai e o Pecado brota da cabeƧa de SatanĆ”s, Eva Ć© feita da costela de AdĆ£o. Ela nĆ£o surge adulta do lado de AdĆ£o, mas Ć© moldada por Deus com material vindo de AdĆ£o. Eva Ć© da substĆ¢ncia de AdĆ£o, assim como o Filho Ć© da substĆ¢ncia do Pai. E o relacionamento entre AdĆ£o e Eva Ć© como o relacionamento entre o Pai e o Filho. Ɖ uma relaĆ§Ć£o de amor, e o amor Ć© criativo. Do amor de AdĆ£o e Eva surgirĆ” a nova raƧa da humanidade, e essa Ć© a raƧa que completarĆ” o triunfo de Deus sobre SatanĆ”s, permitindo que o Messias nasƧa como Jesus Cristo. Notar, tambĆ©m, que esta relaĆ§Ć£o entre AdĆ£o e Eva, o amor que partilham, Ć© o que SatanĆ”s mais inveja e mais gostaria de destruir, de acordo com os seus discursos no Livro IV. Se ele conseguir fazer com que AdĆ£o e Eva se odeiem, o plano de Deus para derrotar SatanĆ”s terminarĆ”, pois nĆ£o haveria uma nova raƧa para substituir os anjos caĆ­dos, nem haveria um redentor para a humanidade. Assim, o importante campo de batalha entre a SantĆ­ssima Trindade e a Trindade SatĆ¢nica nĆ£o Ć© realmente o campo de batalha do CĆ©u, descrito no Livro VI. Ɖ AdĆ£o e Eva. Se o que existe entre eles for amor, eles criarĆ£o vida e farĆ£o parte do reino da SantĆ­ssima Trindade. Se eles se odeiam, serĆ£o estĆ©reis, morrerĆ£o sem descendĆŖncia e farĆ£o parte do reino do Inferno. Teoria de GĆŖnero, Gayzismo e Feminismo sĆ£o infernais.

  • O crĆ­tico italiano Mario Praz (1896-1982), em The Romantic Agony, atĆ© hoje a obra mais interessante sobre o fascĆ­nio exercido sobre a literatura do sĆ©culo XIX por tudo o que Ć© demonĆ­aco, indica o inĆ­cio desse processo na caracterizaĆ§Ć£o peculiar de SatanĆ”s oferecida por Milton em ParaĆ­so Perdido. ā€œFoi Milton quem conferiu Ć  figura de SatanĆ”s todo o fascĆ­nio do rebelde indĆ“mito que jĆ” pertencia Ć s figuras do Prometeu de Ɖsquilo e do Capaneu de Danteā€. De fato, muitos crĆ­ticos e autores de espĆ­rito gnĆ³sticoĀ desejaram enxergar o SatanĆ”s de Milton como algo "estranhamento belo", e.g. ā€œLe plus parfait type de BeautĆ© virile est Satan ā€“ Ć  la maniĆØre de Miltonā€ (Charles Baudelaire)

  • Hegel, com sua dialĆ©tica do negativo, deu uma suntuosa veste teĆ³rica a SatanĆ”s. Para Hegel, o homem deveria pecar, deveria sair da inocĆŖncia natural para se tornar Deus. Ele deveria realizar a promessa da Serpente: deveria conhecer, como Deus, o bem e o mal. Esse conhecimento ā€œĆ© a origem da doenƧa, mas tambĆ©m a fonte da saĆŗde, Ć© o cĆ”lice envenenado no qual o homem bebe a morte e a putrefaĆ§Ć£o, e, ao mesmo tempo, o ponto em que nasce a reconciliaĆ§Ć£o, uma vez que se pĆ“r como mau Ć© em si a superaĆ§Ć£o do malā€. Este Ć© um exemplo dos anjos caĆ­dos discutindo filosofia no PandemĆ“nio.

  • Importantes crĆ­ticos, como T. S. Eliot (1888-1965) e F. R. Leavis (1895-1978) apresentam ressalvas a Milton e sua obra-prima. O problema, apontam, era que Milton, apesar de poderosamente auditivo, carecia de uma forte imaginaĆ§Ć£o visual. Seus sentidos foram ā€œdefinhados desde cedo pelo aprendizado dos livrosā€ e sua cegueira aumentou uma tendĆŖncia natural de depender do ouvido. Sua linguagem Ć© artificial e convencional. Suas imagens sĆ£o gerais, nĆ£o particularizadas. Seu efeito ocorre apenas no ouvido. As palavras em conjunto nĆ£o se iluminam, como acontece em Shakespeare. O estilo de Milton Ć© retĆ³rico para que ā€œocorra um deslocamento atravĆ©s da hipertrofia da imaginaĆ§Ć£o auditiva em detrimento da visual e tĆ”tilā€. Paradise LostĀ deveria ser lido duas vezes, uma vez pelo som, outra pelo sentido; enquanto em Shakespeare ou Dante ambos podem ser apreciados simultaneamente. TambĆ©m o acusam de exotismo pelo estilo latinizado de sua escrita.

  • ā€œThe end then of learning is to repair the ruins of our first parents by regaining to know God aright, and out of that knowledge to love him, to imitate him, to be like him, as we may the nearest by possessing our souls of true virtue, which being united to the heavenly grace of faith makes up the highest perfection.ā€ ā€“ John Milton sobre a importĆ¢ncia da educaĆ§Ć£o, Of Education

  • ā€œI must say, therefore, that after I had for my first years, by the ceaseless diligence and care of my father (whom God recompense!), been exercised to the tongues, and some sciences, as my age would suffer, by sundry masters and teachers, both at home and at the schools, it was found that whether aught was imposed me... prosing or versing, but chiefly by this latter, the style, by certain vital signs it had, was likely to live. [...] I began thus far to assent both to them and divers of my friends here at home, and not less to an inward prompting which now grew daily upon me, that by labour and intense study (which I take to be my portion in this life), joined with the strong propensity of nature, I might perhaps leave something so written to aftertimes, as they should not willingly let it die. [,,,] That if I were certain to write... there ought no regard be sooner had than to God's glory, by the honor and instruction of my country.Ā [...] I applied myself to that resolution... to fix all the industry and art I could unite to the adorning of my native tongue; not to make verbal curiosities the end (that were a toilsome vanity), but to be an interpreter and relater of the best and sagest things among mine own citizens throughout this island in the mother dialect. That what the greatest and choicest wits of Athens, Rome, or modern Italy, and those Hebrews of old did for their country, I, in my proportion, with this over and above, of being a Christian, might do for mine.ā€Ā  ā€“ John Milton sobre a atividade de escritor, The Reason of Church Government urged against Prelaty

  • ā€œFor books are not absolutely dead things, but do contain a potency of life in them to be as active as that soul was whose progeny they are; nay, they do preserve as in a vial the purest efficacy and extraction of that living intellect that bred them.Ā [,,,] I know they are as lively and as vigorously productive as those fabulous dragon's teeth... [...] Many a man lives a burden to the Earth, but a good book is the precious life-blood of a master spirit, embalmed and treasured up on purpose to a life beyond life.ā€ ā€“ John Milton sobre a importĆ¢ncia dos livros,Ā Areopagitica

©2019 by Cultura Animi

    bottom of page