“Sê forte, sê feliz, e ama, mas antes A quem obedecer é amar guarda Seu mandamento. Cuida que as paixões Teu juízo não desviem, que o arbítrio Livre obstaria. A tua e a dos teus Boa ou má a sorte em ti está. Cuida-te Alegrar-me-ás na tua perseverança, E aos benditos. Sê firme; sê-lo ou não A ti o deixo livre e ao teu arbítrio. Perfeito dentro, não procures fora Ajuda; não te tente a transgressão.” – Rafael aconselha Adão (Livro VIII 633-643)
Personagens Principais Deus – o criador onipotente, onisciente e onipresente do universo Filho – filho de Deus (aparentemente não-eterno como Deus para Milton) Satanás – anjo caído pela inveja do Filho (antes chamado Lúcifer) Adão – primeiro humano criado por Deus Eva – primeira mulher criada por Deus
Personagens Secundárias Miguel – arcanjo da justiça Rafael – arcanjo enviado para falar com Adão Gabriel – anjo que guarda o portão do Éden Abdie – anjo caído que retorna a Deus Urania – a musa evocada por Milton Uriel – um dos sete arcanjos Zefão e Ituriel – anjos que ajudam Gabriel a guardar o Éden Morte – filho de Pecado e Satanás Pecado – filha de Satanás, metade mulher, metade serpente Belzebu – anjo caído, age como porta-voz de Satanás Belial – anjo caído, propõe nada fazer contra Deus Mammon – anjo caído, propõe construir um império no Inferno Moloch – anjo caído, propõe guerra frontal contra Deus Mulciber – anjo caído, principal arquiteto do Pandemônio
Interpretação Livro I: Logo nas primeiras linhas Milton estabelece o tema do poema: a desobediência do homem e sua queda do Paraíso, tendo como grande argumento a busca da eterna Providência e o esclarecimento dos caminhos de Deus ao homem – a obra nos instiga a refletir em como o homem deve viver sua existência após a perda do Paraíso.
Depois deste início auspicioso, os versos seguintes nos levam ao fundo do Inferno e introduzem Satanás, a causa do erro de nossos primeiros ancestrais.
Ao definir-se, Satanás afirma que a (sua) mente determina a realidade:
“The mind is its own place, and in itself Can make a Heaven of Hell, a Hell of Heaven.”
Húbris, a imanência absoluta, haveria melhor definição da mais destrutiva patologia humana? O homem sem noção da transcendência acaba preso à matéria, e entregue as suas pulsões parece repetir Satanás: “Better to reign in Hell, than serve in Heaven.”
Satanás busca vingar-se de Deus, cria o palácio infernal (Pandemônio) e convoca os anjos caídos ("Awake, rise, or be for ever fall'n.") para debaterem sua missão após a queda do Céu.
Satanás no Livro I do Paraíso Perdido é, de certa forma, uma figura atraente. Muitos admiram o rebelde, especialmente o rebelde que não se curva diante do adversário, mesmo na derrota. Ele é um líder com uma potente retórica. E atrai simpatia quando aparenta sentir tristeza pela dura situação daqueles a quem levou a um castigo tão terrível. Mas Milton não pretende que vejamos Satanás como um herói. Se ele ainda apresenta alguns traços positivos é porque ainda está próximo de seu estado original – ele foi o anjo mais lindo que Deus criou: Lúcifer, filho da Luz. Mas mesmo no Livro I os danos do seu pecado já começam a aparecer. Ele é dado a rompantes. Ele apresenta a desculpa mais comum que o transgressor que falhou pode apresentar: diz mais de uma vez que não tinha como saber que Deus era tão forte quando ele se rebelou, já que ninguém jamais havia tentado Sua força. Ele mente quando afirma ter esvaziado o Céu, pois apenas um terço dos anjos se rebelou. O resto do poema, especialmente os Livros V e VI, também revelará outras mentiras. E ele é um tolo. Apesar da terrível derrota que acaba de sofrer, ele recusa reconhecer o poder de Deus. Ele continuará a batalha, embora devesse perceber que tudo o que pode obter com sua luta é mais dor para si e seus comandados. Mas ele insiste em se iludir. Milton diz que Satanás e seu exército só podem emergir do lago de fogo porque Deus permite.
Livro II: Satanás abre o debate sobre qual curso a seguir para cobrar o que considera sua justa e velha herança: guerra aberta ou perfídia encoberta? Três demônios adiantam suas propostas: (a) Moloque propõe guerra aberta contra o Céu, (b) Belial prefere a facilidade ignóbil e preguiça pacífica para não ofender ainda mais a Deus e perder sua existência, e (c) Mammon prefere buscar o bem em si mesmos construindo um império no Inferno. Mas Belzebu relembra os planos que foram ouvidos, quando os caídos ainda estavam no céu, de que Deus criaria um novo mundo (a Terra) e um novo ser (o homem) que lhe traria alegria, e propõe destruir ou corromper esta nova criação para ferir a Deus sem guerra aberta – o plano de Satanás, apresentado por Belzebu, é o escolhido. Curiosa demonstração da manipulação de um processo supostamente democrático: o Livro I deixa claro que Satanás já sabia que pretendia uma perfídia encoberta para se vingar de Deus, mas em vez de apresentar seu plano diretamente, ele planta seu fantoche, Belzebu, na audiência. Os outros demônios têm uma palavra a dizer, e quando parece que a facção Belial-Mammon venceu, o tenente de Satanás fala de forma poderosa e persuasiva. Os demônios concordam e dão a Satanás um mandato para fazer o que ele planejou fazer de qualquer maneira. O grupo não chegou a uma decisão real. Foi levado a concordar com a decisão que Satanás já havia tomado. Este procedimento diabólico é comum não só na política, mas em toda e qualquer reunião visando uma decisão seja num sindicato, num clube ou numa empresa.
Embora a proposta de Belzebu receba ampla aprovação, nenhum dos anjos caídos se voluntaria para empreender a viagem. Satanás avança para “buscar a libertação para todos nós” e se propõe a fazer a viagem à Terra para descobrir uma maneira de destruir o homem. Em resposta, os anjos caídos adoram Satanás como um deus. Para se ocuparem durante a jornada de Satanás, os anjos caídos se dividem em três grupos na busca de atividades para aliviar sua dor. O primeiro grupo preocupa-se com esportes e artes marciais. O segundo grupo retira-se para um vale para estudar poesia e música. E o último grupo retira-se para uma colina para prosseguir com a filosofia. Todas estas atividades trazem alívio ao homem, mas o fato dos demônios também através delas se aliviarem não deixa de indicar que estas atividades podem também ser usadas para o mal – isto é verificado especialmente nas artes e na filosofia, principalmente depois do advento da Era Moderna.
À medida que Satanás se aproxima dos portões do Inferno, ele encontra duas figuras sombrias – o Pecado e a Morte. A Morte foi colocada no portão para impedir que alguém saísse. Quando a Morte obstrui a passagem de Satanás, eles iam entrar em conflito quando Pecado interveio. Satanás não os reconhece, mas Pecado é sua filha, nascida de sua própria mente. Depois ele se apaixonou por ela e gerou Morte, seu filho e neto – mais uma poderosa imagem do potencial erro humano: o homem ardoroso dos próprios vícios gerando morte.
A metade superior do corpo de Pecado é atraente, mas quando cedemos à tentação e realmente fazemos o que é errado, descobrimos sua feiura, pois é feia da cintura para baixo – somos atraídos por um prazer transitório apenas para descobrimos as amargas consequências do pecado, que seus frutos podem levar à morte do espírito, ao tipo de remorso que corrói a consciência sem oferecer a possibilidade de arrependimento ou alívio.
Morte é ainda mais horrível que Pecado. Esta pode ser monstruosa, mas, pelo menos, tem uma forma. A Morte é disforme, sem contorno ou essência, devorando tudo o que encontra, transformando suas vítimas no nada. A figura, tal como Milton a apresenta, é o material dos nossos piores pesadelos, o inominável, algo disforme e horrível que nos puxa para o nada que tememos.
Pecado detém a chave dos portões do Inferno. Deus a encarregou de manter os anjos caídos ali cerrados. Satanás conta aos dois seu plano e convence Pecado a abrir os portões para ele. Satanás sai do portão e começa a cair. Ele não pode superar esta descida rápida através do abismo até que um vento fortuito o pegue e o levante (em vários momentos da narrativa Deus age para que Satanás consiga seu intento. A Queda era prevista e necessária para o aperfeiçoamento do homem. Deus não pode ter inimigos, o Diabo é um aspecto de Deus – o Diabo é uma espécie de personal trainer da alma humana). Ao longo de sua jornada pelo abismo, Satanás pede ao Caos instruções para chegar à Terra.
Teologicamente, a alegoria é bastante adequada. Somente o pecado pode abrir as portas do Inferno. A única maneira de descobrir essa cidadela é pecando. Pecado e Morte constroem o caminho mais fácil entre a Terra e o Inferno, pois ceder à tentação nunca foi realmente difícil para os homens. Da mesma forma, é Pecado quem dá origem à Morte – o tipo de maldade que Milton entende por pecado é o assassinato da alma. Envolver-se no pecado, comprometer-se totalmente com o mal, é matar tudo o que é humano, tudo o que há de bom em nossas almas. A carreira de Satanás no poema ilustra o significado do Pecado e da Morte. Satanás, criado por Deus, é ordenado pela natureza para conhecer a verdade e ser bom. Ele demonstra sua afinidade natural pelo bem e pela verdade por seu horror ao ver pela primeira vez o Pecado e a Morte nos portões do Inferno. Eles são feios, e Satanás está tão consciente de sua feiura que precisa ser persuadido antes de poder reconhecê-los como sua responsabilidade e aceitá-los como seus próprios filhos – esta reação será contrastada quando no Livro IV Satanás vê Adão e Eva pela primeira vez.
Livro III: Passagem das trevas do Inferno para a luz do Céu, enquanto Deus, o Pai, vê Satanás em sua jornada em direção à Terra. O Pai prediz que Satanás está empenhado em vingança e conseguirá corromper Adão e Eva, tentando-os à desobediência. Apesar de Seu conhecimento prévio da queda deles, Deus reconhece que o homem carrega a culpa porque foi criado o suficiente para permanecer de pé, mas livre para cair. Deus deixa claro que a humanidade é livre porque a obediência só é sinal de amor e fonte de prazer quando é dada gratuitamente.
No Livro I, Milton anunciou que o tema principal de seu poema era “esclarecer os caminhos de Deus ao homem”, e começa a apresentá-lo aqui. Em primeiro lugar, Deus não é responsável pela queda nem dos anjos nem dos homens. Ele lhes deu o dom do livre arbítrio. Ele lhes disse o que deveriam fazer e ofereceu-lhes a graça que os capacita a cumprir Seus mandamentos. O perigo do livre arbítrio é que quem é livre para escolher é livre para escolher mal. No entanto, negar um dom tão grande às Suas criaturas seria certamente menos generoso da parte de Deus do que conceder-lhes o livre arbítrio, mesmo sabendo que este será abusado.
O Pai declara diante do Filho e de todos os anjos que o homem cairá e merecerá justamente a morte, que só poderá ser evitada se outro se oferecer para morrer no lugar do homem. Deus não fecha Seus olhos ou ouvidos às orações, ao arrependimento e à obediência dos caídos. Ele também enviará Sua “consciência árbitro” para guiar o homem à salvação. Mas a justiça de Deus exige que o castigo pela queda do homem seja a morte. O homem pode se arrepender, mas somente através da graça de Deus. Para que o homem seja perdoado, outro deve receber o seu castigo. Quando Deus pergunta se esse tipo de amor existe no céu, todos os anjos ficam sentados em silêncio. Mas depois deste silêncio dramático, o Filho voluntaria-se para morrer em nome do homem e para cumprir a justiça, a misericórdia e o amor de Deus. O Filho escolhe livremente obedecer à vontade do Pai e exemplifica a liberdade adequada. O Céu se enche de admiração pelo amor expresso pelo Filho – a essência da liberdade é a obediência, a essência da obediência é o sacrifício.
A redenção do homem é a maneira mais óbvia pela qual o bem surge do mal de Satanás, esclarecendo, mais uma vez, os caminhos de Deus para os homens. Mas a possibilidade de que o bem possa surgir do mal se os homens cooperarem com Deus aparece no poema também de outras maneiras. Por exemplo, a oração de Milton à Luz (um dos nomes tradicionais para o Espírito Santo) não é apenas um apelo comovente de um homem cego. Está significativamente relacionado ao tema do poema. A cegueira de Milton é um mal inegável. Mesmo assim, ele pede que Deus o ajude a transformar isso em algo bom. Ele não pode ver o mundo físico. Portanto, com a graça de Deus, Sua “Luz Celestial”, Milton pede permissão para ver ainda melhor do que os outros podem – porque ele se aproximará dela sem distração, a verdade que só pode ser vista espiritualmente.
A comparação entre a reunião no Céu e no Inferno se destaca pelas diferenças: (a) apenas os principais demônios participaram da reunião no Inferno, ao passo que toda a hoste celestial está presente na reunião de Deus; (b) nenhuma das manipulações praticadas por Satanás é necessária, já que Deus declara Seu próprio caso; (c) quando Ele pede um voluntário para aceitar a morte para que os homens possam viver, não é necessário interromper abruptamente a reunião depois que o Filho se voluntaria, pois ninguém no Céu tentaria roubar a glória do Filho. Satanás pode pensar que há inveja no Céu– como ele disse no seu primeiro longo discurso no Livro II, mas agora que ele se foi daquelas regiões estreladas, a inveja também se foi, ela o seguiu até o Inferno.
Milton retorna para Satanás quando ele chega ao nosso sistema solar próximo dos limites com o Céu. Os degraus do Céu descem diante dele (Deus novamente ajuda Satanás) e Satanás os sobe para ter uma visão melhor da Terra. Ele avista o sol e voa em direção a ele, onde descobre Uriel, o anjo de visão mais aguçada do Céu, de olho na nova criação. Antes que Uriel o aviste, Satanás se transforma em um querubim. Quando Uriel o ouve e se vira, Satanás finge que está apenas ansioso para ver a mais nova criação de Deus. Uriel, enganado, aponta o caminho para o Éden.
Livro IV: Em contraste com a sua retórica pública arrogante, o discurso privado de Satanás é muito mais honesto. Satanás admite que não pode escapar do Inferno – “Which way I fly is Hell; myself am Hell.”. Ele fica magoado com a lembrança de sua antiga glória e reconhece que ofendeu a Deus. Deus não merecia a desobediência que Satanás incitou. Mas Satanás culpa Deus pelo seu próprio orgulho e ambição porque Deus o tornou glorioso – Satanás confirma muito do que Deus disse no Livro III, pois ele escolheu o mal livremente. Satanás conclui: “All good to me is lost; Evil, be thou my good".
Satanás chega ao Éden e finalmente consegue vislumbrar Adão e Eva. Ele fica maravilhado ao vê-los, reconhece sua beleza e até pensa consigo mesmo que poderia amá-los. Mas ele não vacila na sua missão de destruí-los e tem prazer em pensar que a existência feliz de Adão e Eva no Jardim chegará em breve ao fim. Sem ser visto por Adão e Eva, Satanás ouve Adão lembrar a Eva que Deus emitiu apenas uma ordem que eles devem obedecer: não comer o fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Satanás considera a ordem de Deus irracional e conclui que Adão e Eva obedecem a Deus apenas por ignorância. Ele decide que este é um caminho para tentar Adão e Eva e seduzi-los à desobediência.
Milton compreende a psicologia do pecado: Satanás, criado por Deus, possui uma natureza que reconhece a verdade e anseia pelo bem. Assim, quando pratica o mal, ele violenta, antes de tudo, a sua própria natureza. Na verdade, ele age contra si mesmo em um grau tão grande que precisa destruir o que deveria amar. O pecado leva à loucura, explicando o aspecto demente do presente comportamento social – presentemente somos uma sociedade caída no pecado.
Os anjos de Deus patrulham o Éden e dois deles descobrem Satanás “agachado como um sapo” sussurrando no ouvido de Eva enquanto ela dorme. Satanás é levado diante de Gabriel, o líder do grupo angélico. Gabriel questiona Satanás e prova as falácias de seus argumentos. As desculpas de Satanás caem por terra quando ele se revela um mentiroso, não um líder. Satanás fica furioso e quer lutar contra Gabriel, mas os presságios nas estrelas predizem a vitória de Gabriel, e Satanás foge.
A autodestruição de Satanás é simbolizada pelas formas que ele assume. No final do Livro III, ele se disfarçou de querubim, um anjo menor. Depois de saltar para o Jardim, ele se senta na Árvore da Vida na forma de um cormorão. Para observar Adão e Eva mais de perto, ele assume a forma de um leão e depois de um tigre. E quando Satanás sussurra no ouvido de Eva enquanto ela dorme, ele se reduziu a um sapo. Observe a progressão: do arcanjo ao querubim, ao pássaro, ao animal, ao sapo. Cada mudança o traz para mais perto da terra, mais baixo na escala espiritual. Ele não percebe que, quando escolhe ser um sapo, torna impossível para si mesmo voltar a ser um arcanjo.
O Livro IV corrige, assim como o resto do poema, os fatos que Satanás distorceu. Ele é dado a gabar-se da sua coragem, da sua sinceridade, da forma como sempre defendeu destemidamente os seus direitos. A imagem do nobre rebelde fica manchada quando percebemos que Satanás é astuto. Depois de ter expressado a inveja venenosa que o amor entre Adão e Eva despertou, ele se afasta com desdém, mas “com astuta circunspecção”. E Gabriel nos diz que Satanás, ao planejar sua rebelião, também era astuto. Ele não falou com ousadia, como gostaria que pensássemos; ele se encolheu e bajulou a Deus, na esperança de enganá-lo. Na sua conversa com Gabriel, ouvimos Satanás dizer o tipo de coisa que um delinquente juvenil diria. Ele diz que aqueles que permaneceram fiéis a Deus permaneceram fiéis porque a obediência era o caminho mais fácil e covarde. É assim que uma criança de nove anos provoca outra criança de nove anos para que fume: “Você será um maricas se não fumar!” É interessante notar, também, que Satanás, como a maioria dos pecadores, vê o pecado que o assedia em todos os lugares. Ele está obcecado pela inveja. Por ser assim, ele distorcidamente vê a proibição de Deus a Adão e Eva como um ato de inveja. Quando ouve falar da lei, ele está tão possuído pelo mal que, apesar da sua inteligência natural, não consegue perceber o que realmente significa aquela restrição.
A representação do Paraíso de Milton é tocantemente bela, mas de alguma forma condenada. Somos constantemente lembrados de que Adão e Eva não desfrutarão da paz por muito tempo. Em primeiro lugar, existe a presença de Satanás. Em segundo lugar, a Árvore da Vida está ao lado da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, e nunca podemos esquecer o que essa árvore representa. Mais sutilmente, os animais mencionados como amigáveis com Adão e Eva são aqueles que são mais hostis agora – tigres, leões, leopardos, etc. E no final da cena idílica em que os animais procuram divertir o casal humano, nós vemos a serpente, cuja forma Satanás assumirá quando tentar Adão e Eva. Cada declaração sobre a doçura da vida no Paraíso tende, então, a lembrar-nos das condições em que vivemos agora. Quando Milton diz que no Paraíso se encontrou “without thorn the rose”, não podemos deixar de pensar nos espinhos que encontramos agora.
Há também um prenúncio na representação de Adão e Eva. O primeiro discurso de Adão (líder, protetor) é sobre a restrição que Deus lhes impôs. E ele está dizendo que não tem intenção de quebrar essa regra. Mas uma forma de ficar tentado a quebrar regras é pensar muito nelas. Como os dois não estão nem perto da árvore, o discurso sugere que a árvore está ocupando demais a mente de Adão. O prenúncio em relação a Eva (companheira, suporte) é muito mais evidente. Ao contar sobre seu primeiro dia de sua vida, ela demonstra seu ponto fraco: a vaidade – ela quase se apaixonou pela própria imagem no lago. Ela é salva desse narcisismo fatal pela voz de Deus. Mas o incidente serve para nos aleratr que ela pode ser influenciada pela vaidade.
A posição de Adão e Eva no Paraíso é muito semelhante à de Satanás antes da sua queda. Satanás era o mais elevado dos anjos, precisando obedecer apenas a Deus e a Seu Filho. Adão é a criatura mais elevada da terra, precisando obedecer apenas a Deus. A sua obediência assume uma forma específica: não comer do fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Satanás pensa que Deus fez a restrição por inveja. Mas desde que Satanás – como ele ele mesmo admite em seu longo discurso no início do Livro IV – entendeu mal suas próprias obrigações no Céu, talvez ele também entenda mal as de Adão. Em primeiro lugar, a restrição não é contra o conhecimento como tal, pois Adão, como veremos mais tarde, é encorajado a conhecer e saber. A árvore diz respeito a um conhecimento particular: o conhecimento do bem e do mal. Como alguém conhece a diferença entre o bem e o mal? Satanás, no poema, demonstra como. Ninguém pode conhecer o mal tão bem como ele, nem ninguém pode saber tão bem o quanto ele difere do bem. E este conhecimento vem do fato de ter feito o mal. A restrição, então, entendida à luz da experiência de Satanás – e também da experiência da maioria dos seres humanos –, significa simplesmente que Deus ordenou a Adão e Eva que não praticassem o mal. Eles não devem desejar o tipo de conhecimento que só podem obter através do pecado. E quando vemos quais foram as consequências de tal conhecimento para Satanás, entendemos que não é um conhecimento invejável.
Livro V: Adão acorda e encontra Eva ainda num sono agitado. Quando ele a acorda, ela lhe conta sobre seu sonho angustiante. O sonho de Eva é outro artifício que Milton usa para prenunciar o drama que se aproxima. Explica os efeitos da tentativa do Diabo de corrompê-la enquanto ela dormia. Também apresenta uma prévia de sua cena da tentação. Observar o apelo à sua vaidade, quando Satanás lhe diz que ela é a criatura para quem todas as estrelas brilham e por quem todos os seres celestiais estão esperando.
Após a oração matinal de Adão e Eva, Deus envia Rafael para avisá-los do perigo. Quando caírem, não poderão dizer que não foram avisados. Os acontecimentos após a Queda mostrarão que o aviso de Deus é de fato uma bondade para com Adão e Eva, embora pareça simplesmente aumentar a responsabilidade por seus pecados.
O relato de Rafael sobre a rebelião de Satanás apresenta novas correções das mentiras deste. Satanás não se levantou com ousadia, como disse, pela liberdade. A primeira sombra de pecado que entrou em sua mente o tornou hipócrita e astuto. Ele fingiu obediência ao decreto de Deus e depois fugiu com seus seguidores por medo da represália divina. Nem Deus temeu pelo Seu trono diante das ameaças de Satanás, como Satanás afirmou em seus discursos no Pandemônio. Deus e o Filho receberam a notícia da rebelião com sorrisos irônicos, sabendo que seu poder poderia facilmente derrubar o rebelado.
O verdadeiro herói da cena é Abdiel, o único membro das legiões de Satanás que tem a integridade e a coragem para enfrentar sozinho o erro. Ele é uma invenção de Milton, e é evidente que o autor admira a personagem. Abdiel, além disso, é exatamente o que Satanás gostaria que acreditássemos que ele, Satanás, é. Abdiel é verdadeiramente ousado, verdadeiramente independente, verdadeiramente capaz de exercer a liberdade de que Satanás tanto fala. Ele está completamente livre da necessidade de estar bem diante de seus semelhantes. Ele segue a sua consciência, não a opinião pública. Lembrar, em contraste, do solilóquio de Satanás no início do Livro IV quando ele admite ter vergonha de se arrepender por causa do que seus seguidores diriam. Ser influenciado desta forma é seguir, não liderar. A presença de Abdiel serve para nos lembrar o quão mesquinho Satanás realmente é, apesar do esplendor da sua retórica.
A recusa de Satanás em obedecer a Deus leva-o imediatamente ao absurdo lógico e também à hipocrisia. Ele afirma ser “self-created”. Não é preciso acreditar num Deus criador para reconhecer que tal afirmação é impossível. Para poder criar a si mesmo, Satanás teria que existir antes de ter sido criado, existir antes de ser trazido à existência – uma situação na qual ele se coloca como Deus.
Milton é ambíguo em sua apresentação da Santíssima Trindade. Muitos comentaristas consideram que Milton não acreditava de forma alguma na Trindade. Ele acreditava, segundo eles, que Deus é uma única pessoa e que Cristo não é realmente Deus feito homem, mas sim um homem cuja virtude singular o tornou capaz de se tornar Deus. Quer tal interpretação do pensamento de Milton seja verdadeira ou não, Milton tem o cuidado de expressar a doutrina em Paraíso Perdido na maior parte de acordo com as posições cristãs tradicionais. Assim, quando o Pai no Livro V declara que Ele hoje “gerou” Seu Filho, Ele não quer dizer que o Filho não existia antes. Tal posição teria sido extremamente herética, pois teria negado qualquer possibilidade de igualdade entre o Pai e o Filho. A palavra “gerado” significa, em vez disso, que Deus está naquele dia gerando Seu Filho como Rei, declarando-O como o Messias. A existência anterior do Filho é provada pela afirmação de Abdiel de que foi por meio do Filho que os anjos foram criados.
Livros VI-VIII: Rafael segue seu relato ensinando Adão sobre a batalha no Céu (livro VI), a criação do Éden (livro VII), e sobre a aquisição de conhecimento (livro VIII). Quando Abdiel retorna para Deus, ele é elogiado por sua decisão corajosa de defender sozinho a verdade contra os anjos rebeldes. Satanás reúne suas forças para a batalha. Abdiel o confronta novamente antes do início da luta. Abdiel chama Satanás de tolo por pensar que pode derrotar Deus na batalha. Satanás acusa Abdiel de preferir o servilismo à liberdade, e Abdiel responde que a liberdade consiste na obediência a Deus – são os rebeldes que são escravizados. A verdeira liberdade é vencer os desejos ilegítimos, a pior escravidão é sujeitar-se as pulsões – a luta pela liberdade é uma batalha interior. Abdiel o atinge com um golpe que faz Satanás recuar dez passos e cair sobre um joelho. Satanás e os anjos rebeldes estão consternados com o facto de um anjo aparentemente inconsequente como Abdiel poder desferir um golpe tão poderoso contra o seu líder. Satanás se considerava igual a Deus, mas é humilhado por um anjo menor.
Abdiel diz a Satanás: "Reign thou in Hell, thy kingdom; let me serve In Heaven God ever blest."
Esta fala remete às palavras de Satanás no Livro I (“Better to reign in Hell than serve in Heaven.”), estabelecendo Abdiel como o herói que Satanás gostaria de ser.
A guerra continua entre os anjos fiéis e rebeldes por dois dias, sem nenhuma vitória decisiva. Deus declara que o terceiro dia de batalha pertence a Cristo. Cristo diz aos anjos de Deus para se afastarem e deixá-Lo lutar sozinho contra o exército rebelde. O Filho exerce menos da metade de Seu poder, mas os anjos rebeldes largam suas armas e se lançam do Céu ao Inferno para escapar Dele. Rafael avisa Adão que esta derrota é a raiz da raiva e da inveja de Satanás, animando seu desejo malévolo de tentar Adão à desobediência e arruinar seu estado feliz.
Os eventos do Livro VII representam a primeira vez que Deus faz o bem mediante um mal. Derrotar Satanás teria sido apenas uma vitória negativa. Deus teria ficado apenas mais pobre com a derrota de Satanás. Mas Ele usa a rebelião de Satanás como uma razão para criar um novo mundo, um mundo que arranca mais território das garras do Caos e difunde a novos reinos a bondade de Deus. Terá de haver uma conquista comparável após a queda de Adão, ou Satanás terá vencido o segundo turno da sua batalha com Deus.
Adão pede a Rafael que lhe ensine sobre a criação do mundo e sua própria criação. Rafael aprova este desejo de Adão por conhecimento – obtê-lo ajudará Adão a glorificar a Deus e a aumentar sua própria felicidade. Mas o desejo de Adão por conhecimento deve ser mantido “dentro dos limites”. Rafael compara conhecimento à comida. Adão deve controlar seu apetite. Rafael conta a Adão sobre a criação do mundo, das criaturas e do homem, o “masterwork” de Deus. Em contraste com os animais, o homem foi feito de pé, dotado de razão e dotado da capacidade de autoconhecimento e de piedade a Deus. Adão pergunta a Rafael sobre os movimentos celestiais e Rafael o adverte a “ser humildemente sábio” e não se preocupar com assuntos muito acima de suas possibilidades. Os grandes mistérios estão acima da capacidade humana. A busca do conhecimento fora do nosso alcance é uma perversão dos desejos evolutivos, uma exaltação desarmônica dos desejos levada a ideal de perfeição. (influência do monstro Equidna na mitologia grega)
Adão tem uma consciência intuitiva do fato de que ele não pode ter criado a si mesmo e que, como não o fez, deve ação de graças e adoração a quem o fez – contrastando com a ostentação de autocriação de Satanás. Observar também que Adão sabe que está muito abaixo de Deus, tão abaixo Dele que não consegue compreender Sua natureza. Assim, embora Adão possa nomear os animais, ele não pode dar nome a Deus, pois o ato de nomear implicaria igualdade ou superioridade sobre a coisa nomeada. A sabedoria de Adão em reconhecer a sua incapacidade de dar um nome ao seu Criador também contrasta com a tentativa de Satanás de provar que ele é igual a Deus.
O Adão não-caído representa o ideal de conhecimento humano de Milton. Adão compreende facilmente muitas coisas que achamos difíceis de aprender. A maioria dos estudantes de biologia, por exemplo, acharia o conhecimento de Adão sobre os animais e suas naturezas realmente invejável. Além disso, ele se entende. Ele vê tão bem seu relacionamento com Deus que sabe que é obrigado a obedecê-Lo. Ele aprende facilmente. E o seu conhecimento é obviamente a sua característica mais desejável. Deus demonstra prazer em testá-lo, e expressa Sua alegria na inteligência de Adão e na coragem que o conhecimento lhe dá.
Pouco antes da partida de Rafael, Adão confidencia que a beleza de Eva desperta paixões dentro dele a tal ponto que domina sua autoridade e razão. Rafael, preocupado, diz a Adão para não culpar a beleza de Eva – ou a Natureza – pela sua fraqueza. Ele deve governar suas paixões.
Adão pensa, com razão, que a melhor coisa que Deus lhe deu foi Eva. Quando ele conta o primeiro encontro, ele é muito mais gentil com ela do que ela consigo mesma. No próprio relato de sua criação no Livro IV, ela se culpa pela vaidade que a fez preferir temporariamente sua própria imagem a Adão. Adão vê o outro lado dessa vaidade. Ele vê a hesitação dela como um desejo de ser cortejada. Adão diz que Eva conhecia seu próprio valor e, sabendo disso, sabia que não deveria se entregar levianamente. É a maneira de uma mulher fazer com que seu amante saiba que a entrega de si mesma é um presente de alto valor. As opiniões de Adão e Eva estão certas. Ela precisa se valorizar, mas não se valorizar acima de Adão. Se o fizesse, significaria que ela escolheu a esterilidade da auto-adoração em vez da fecundidade do casamento. O perigo surge quando seu respeito próprio se transforma em vaidade. Até agora, a perigosa vaidade foi apenas prenunciada. Eva ainda não cedeu.
O Livro VIII prenuncia a queda de Adão, pois apresenta sua fraqueza. O pecado de Adão, segundo Milton, é o amor excessivo pela esposa. Obviamente ele não condena o amor entre marido e mulher como demonstrado em todo o épico, principalmente nos livros IV e VIII. O que Milton considera errado é o amor baseado na paixão. Adão diz que ama tanto Eva que sua razão é temporariamente superada por sua paixão por ela. A confissão de Adão sobre o quanto a ama nos alerta sobre a brecha que aparecerá em sua armadura.
Outra sugestão das limitações de Adão surge em sua tentativa de culpar a natureza ou Deus por sua fraqueza. Ao confessar seu amor quase excessivo por Eva, ele sugere a Rafael que a Natureza o tornou muito fraco ou Eva muito bonita. O desejo de Adão de colocar a culpa por suas falhas em algo além dele ficará ainda mais evidente conforma avança o épico.
Livro IX: Satanás retorna ao Éden e fica impressionado com a bondade e a beleza do Jardim, mas sua incapacidade de participar dele o atormenta. Ele decide que seu único remédio é arruiná-lo. Ele escolhe a serpente como o artifício através do qual enganará Adão e Eva. Sua “foul descent” até a forma de uma serpente fere seu orgulho, mas sua ambição de vingança supera este orgulho. Satanás toma sua forma mais baixa (perde todos os resquícios do anjo que foi), seu discurso é incoerente, e ele mente para si mesmo.
Eva propõe a Adão que dividam seu trabalho para serem mais produtivos, mas Adão resiste. À luz do aviso de Rafael sobre Satanás, Adão acha que eles deveriam permanecer juntos. Ele se sente encorajado pela presença dela e acredita que eles terão mais chances contra o Tentador se permanecerem juntos. Mas Adão se recusa a ordenar que Eva fique e deixa a decisão para ela. Eva demonstra inexperiência, ingenuidade e ignorância ao decidir pela separação (desejada pela Serpente) para poder provar sua virtude testando-a.
A Serpente lisonjeia a beleza de Eva e tenta despertar nela o desejo de ser uma deusa. A Serpente diz a Eva que ganhou o poder da fala ao provar o fruto de uma certa árvore.
Quando Eva vê que é a Árvore do Conhecimento, diz à Serpente que está proibida de comer o fruto daquela árvore. A Serpente insiste que Deus proibiu o fruto para evitar que se tornassem deuses – para mantê-los humildes e ignorantes. Eva cede à tentação, colhe um fruto da Árvore e o come. Eva sente-se superior, confundindo inebriamento com sabedoria. O ponto alto de sua tolice ocorre quando ela, que pretendia se tornar uma deusa, se ajoelha para adorar a árvore como um deus. Ela perdeu a consciência de que é muito mais elevada na natureza do que uma árvore (perfeito retrato dos hodiernos adoradores de Gaia).
Assim que Adão entende o que aconteceu, debate consigo mesmo se deveria deixar Eva enfrentar a morte sozinha, mas não consegue suportar a ideia de viver sem ela. Eva garante a ele que comer da Árvore do Conhecimento abriu-lhe os olhos, animou-lhe os sentidos e infundiu-lhe novas esperanças e sonhos (soa como uma viciada em drogas). Adão, “against his better knowledge”, aceita a oferta de Eva de provar o fruto, e a terra estremece. Adão e
Eva experimentam felicidade momentânea depois de comerem a fruta – eles ficam “intoxicated” e “feel divinity within them breeding wings” – mas ela se manifesta primeiro como luxúria um pelo outro (no lugar do amor). Na manhã seguinte, eles acordam envergonhados (a prática do mal traz a vergonha) e descobrem que sua paz interior se foi – “the force of the fallacious fruit, [...] was now exhaled” (o prazer ilegítimo evai-se facilmente). Eles choram e culpam um ao outro pelo que aconteceu. Nenhum dos dois aceita a responsabilidade por sua desobediência – não há mais amor entre eles.
No final do Livro IX, Adão e Eva estão a caminho de se tornarem parte do reino de Satanás. Se nada acontecer para restaurar o amor entre eles, tudo o que conseguirão produzir será a esterilidade – Adão, Eva e Nada seriam uma trindade muito mais profana do que sagrada.
Livro X: Deus envia o Filho ao Jardim para julgar Adão e Eva. Cristo repreende Adão por obedecer a Eva em vez de a Deus. Eva explica que a Serpente a enganou para que comesse o fruto proibido. O Filho amaldiçoa a Serpente e prediz que “seed (de Eva) shall bruise” a cabeça da Serpente. O Filho informa a Adão e Eva que a vida após a Queda mudará para pior. Eva sentirá dores no parto. Adão terá que trabalhar para obter alimento. Mas o Filho também mostra misericórdia. Ele prenuncia o Evangelho ao assumir a forma de um servo para vestir a nudez exterior deles com peles e a nudez interior com a Sua justiça.
Deus precisa da cooperação dos homens para alcançar a vitória completa sobre Satanás. O Filho não pode se tornar Jesus Cristo, o Salvador da humanidade, se não houver a raça humana na qual Ele possa nascer. E é Cristo quem alcançará a vitória final de Deus, como explicado no Livro III.
Satanás retorna ao Inferno e anuncia sua vitória. Ele se regozija por ter sido capaz de seduzir o homem à desobediência e reivindicar um novo lar para os caídos. Em vez de aplausos retumbantes, Satanás é saudado com sibilos pelos demônios. Não há mais nenhum resquício de Lúcifer, a escolha pelo mal o destruiu. Todos os anjos caídos foram transformados em serpentes e sofrem de uma sede ardente. Um bosque carregado com os frutos proibidos do Paraíso surge no Inferno. Os demônios mordem a fruta na esperança de saciar a sede, mas ela se transforma em cinzas enquanto comem – aquele que se exaltava a si mesmo terminou humilhado. O fascínio que inicialmente Satanás provoca em muitos leitores se assemelha ao aspecto sedutor e convidativo dos pecados e vícios. E seu final aviltante remete ao destino do pecador.
Adão aceita a responsabilidade por suas ações como a única fonte de corrupção e lhe dói saber que sua prole sofrerá por causa de sua desobediência. Embora ele ainda esteja zangado com Eva, ela tenta consolá-lo. Ela chora aos seus pés e se oferece para retornar ao local de julgamento para assumir a responsabilidade exclusiva sobre si mesma. A pessoa que devolve a Trindade Humana ao domínio de Deus é Eva, e ela o faz da única maneira possível: através do amor. Adão reconcilia-se com Eva, mas reconhece que, embora cada um queira assumir todo o fardo da punição para poupar o outro, eles são incapazes de rescindir a punição de Deus. Eva sugere que eles cometam suicídio para escapar do sofrimento, mas Adão lembra a Eva que há esperança na promessa de Cristo de que sua semente esmagará a cabeça da Serpente. Eles retornam ao local do julgamento para confessar os seus pecados e buscar o perdão de Deus – sua humildade dará testemunho da verdade das palavras de Cristo: “Quem se humilha será exaltado”.
Livros XI-XII: À medida que Adão e Eva se arrependem e oram, o Filho intercede junto ao Pai em favor deles. Ele pede ao Pai que O aceite como sacrifício para que o homem se reconcilie com Deus. O Pai aceita a intercessão do Filho com alegria, mas as consequências do pecado ainda devem seguir. Adão e Eva serão banidos do Jardim para não comerem da Árvore da Vida. Deus ordena que o arcanjo Miguel vá ao Éden para fazer cumprir esta sentença. Se Adão e Eva aceitarem sua sentença com humildade, Deus autoriza Miguel a revelar Seus planos futuros a Adão para fortalecer sua fé. Quando Miguel diz a Adão e Eva que eles devem deixar o Jardim, Adão teme ser banido da presença de Deus. Miguel lhe garante que Deus estará com ele onde quer que ele vá. Adão aceita o castigo, e Miguel o prepara para receber visões do que está por vir.
Miguel leva Adão ao topo da colina mais alta do Paraíso. Os olhos de Adão foram ofuscados pela Queda (os vícios nos afastam da Verdade), Michael remove as névoas que obstruem sua visão e permite que Adão veja claramente. Miguel revela a Adão uma sequência de eventos registrados nas Escrituras. Adão vê a dor e a morte que entrarão no mundo por causa de sua desobediência, mas ele também vê seus descendentes permanecerem firmes na fé e servirem a Deus. Miguel conta a Adão sobre os eventos que culminarão no nascimento de Jesus. Adão se pergunta sobre o imenso bem que Deus trará de sua própria desobediência. Antes de deixar o topo da colina, Miguel adverte Adão a acrescentar ações, fé, virtude e amor ao seu conhecimento. Se Adão fizer isso, ele experimentará o paraíso dentro de sua alma. Quando Lúcifer e seus seguidores caíram, eles decidiram ir contra Deus uma vez mais. Adão e Eva enfrentaram a queda com o arrependimento sincero e louvor a Deus.
A vitória de Deus sobre Satanás, a Sua capacidade de extrair o bem do mal, é manifestada no Livro XI. O Filho diz que as orações humildes e arrependidas de Adão e Eva são frutos da graça de Deus, um fruto mais agradável do que qualquer outro que o Paraíso antes da Queda pudesse produzir, pois as orações são melhores do que qualquer um dos atos que o casal humano realizou no seu estado de inocência. Adão e Eva antes da Queda são bons, mas demasiadamente pueris. Na sua queda, eles se tornaram crianças más, mas em seu arrependimento eles alcançam novas alturas: eles amadurecem. Além disto, O pecador pode desenvolver novas virtudes impossíveis naquele estado de inocência, e.g. tolerância, compaixão, entendimento e caridade.
A experiência de Adão e Eva também remete à experiência humana universal. Todos nós passamos da frágil inocência da infância, através da descoberta do mal, para a caridade que aceita as nossas próprias falhas e as dos nossos semelhantes. Isto é, ascendemos para essa caridade se nos permitirmos aceitar, como fizeram Adão e Eva, as lições que a nossa fraqueza pode nos ensinar. Tal aceitação só é possível, diz Milton, porque Deus nos oferece a graça pela qual podemos compreender a nós mesmos e a Ele. Precisamos apenas escolher aceitar essa graça, como Eva escolhe aceitá-la quando implora a Adão que a perdoe.
Num mundo caído, num mundo corrompido pelo pecado, a morte não é um mal, mas um bem. Adão e Eva devem deixar o Paraíso, decreta Deus. No entanto, o decreto não é severo. Permitir que os dois permanecessem no Jardim para comer do fruto da Árvore da Vida não seria bondade, mas crueldade. A vida deles, contaminada pelo pecado e pela tristeza, precisa acabar. Viver imortalmente em tal estado seria intolerável. Além disso, a morte, para o homem bom, é a entrada em um novo tipo de vida.
Adão ecoa a declaração de Deus depois de ter aprendido com Miguel sobre as maneiras pelas quais os homens morrerão. Ele passa a saber que mesmo a vida mais moderada precisa terminar com a morte: os homens, sujeitos ao pecado, envelhecerão, perderão o vigor e a energia e, se viverem bem, estarão prontos para morrer. Uma ideia comparável é apresentada nas Viagens de Gulliver de Jonathan Swift, quando Gulliver visita a terra dos imortais Struldbrugs.
A história do mundo que Miguel mostra a Adão compreende o material dos capítulos IV a IX do Livro do Gênesis. O Livro XI termina com outro exemplo de Deus extraindo o bem do mal: o resgate de Noé, o único homem justo, e sua família na Arca, para que uma nova raça possa vir à Terra com outra chance de viver em retidão. A última imagem do Livro XI é o arco-íris, símbolo tradicional de esperança. É a aliança de Deus com Noé, a Sua promessa de que Ele nunca mais destruirá a humanidade. Os homens viverão na Terra até que o fim do mundo una o Céu e a Terra.
O Livro XII continua a história do mundo iniciada no Livro XI, uma história que atinge o seu clímax com o nascimento de Cristo. Adão dá voz à doutrina cristã da Queda Feliz: agora que sabe da vinda de Cristo, diz ele, não sabe se deve chorar pelo seu pecado ou se alegrar por causa dele, pois a vinda de Cristo tornará possível uma vida ainda mais elevada para os homens do que a inocência de Adão poderia ter alcançado.
Milton sabe que a vinda de Cristo não eliminou o pecado. O que fez foi ensinar aos homens que estão dispostos a aprender como viver num mundo onde muitos dos seus cidadãos estão comprometidos com o mal. Cristo não prometeu nenhuma utopia. Ele prometeu, antes, paz na Terra aos homens de boa vontade. Ele prometeu tornar possível que tais homens vivam por meio da fé e da graça em paz com Deus e consigo mesmos. Miguel explica a Adão como será essa paz: se Adão tiver fé, virtude e caridade, não precisará temer deixar o Paraíso, pois ele possuirá “A paradise within happier far”.
Satanás carregava o Inferno dentro de si, não importa aonde ia, pois carrega consigo seu tormento. Mas Adão e Eva aprenderam que a sua paz e felicidade dependem deles próprios e não do ambiente que os rodeia. O Jardim do Éden é apenas um cenário. Eles ficaram tão infelizes logo após a queda quanto estavam felizes antes. Podem ter felicidade onde quer que estejam, uma felicidade mais segura do que a proporcionada pelo Paraíso, se preservarem a sua obediência a Deus e o seu amor um pelo outro.
Miguel fez Eva dormir durante a revelação no topo da colina. Deus a visitou em seus sonhos e a consolou dizendo que a semente prometida dentro dela restauraria a humanidade. Miguel expulsa a dupla para fora do Jardim. Choram pela perda, mas estão cheios de paz e esperança no futuro por causa das promessas de Deus.
No final, Adão e Eva, de mãos dadas, afastam-se do Paraíso para construírem juntos o seu novo paraíso. A paz e o amor que sentem um pelo outro e por Deus significam que a Trindade Humana não será Adão, Eva e Nada, mas Adão, Eva e seus filhos vivos – e, em última análise, a Criança que é o Cristo. O poema termina no ponto inicial da história bíblica, que acaba de ser predita a Adão, agora é um novo começo:
"The world was all before them, where to choose Their place of rest, and Providence their guide: They, hand in hand, with wandering steps and slow, Through Eden took their solitary way."
Notas
John Milton (1608-1674) nasceu em Londres, Inglaterra.
Poeta, ativista político e historiador, Milton é considerado o autor inglês mais importante depois de William Shakespeare. Otto Maria Carpaux o considera o maior poeta inglês depois de Shakespeare.
Filosoficamente um materialista, Milton não segue a doutrina cristã tradicional – “Milton é o Dante do protestantismo.” (Carpeaux). Mas apesar de suas ideias pouco ortodoxas, Milton era um devoto.
Composto entre 1658 e 1664, Paraíso Perdido, poema épico em verso branco, é uma das últimas obras de John Milton, originalmente publicado em 10 livros em 1667 e, com os livros 7 e 10 divididos em duas partes, publicado em 12 livros na segunda edição de 1674.
Paraíso Perdido foi composto quando Milton já estava cego e proscrito da vida política. Nesta mesma época ele havia encontrado o verdadeiro heroísmo na obediência a Deus e na paciência para aceitar o sofrimento sem perder a fé.
Muitos estudiosos consideram Paraíso Perdido um dos maiores poemas da língua inglesa. Conta a história bíblica da queda em desgraça de Adão e Eva (e, por extensão, de toda a humanidade) em uma linguagem que é uma conquista suprema de ritmo e som. A estrutura de 12 livros, a técnica de começar in medias res, e a invocação da musa são de inspiração clássica. O assunto, no entanto, é distintamente cristão.
Milton ecoa Dante e Virgílio, e.g. (a) No Livro I, grande parte da descrição do Inferno vem de Dante; (b) o discurso de Satanás que inspira falsas esperanças nos seus companheiros anjos caídos é uma reescrita da exortação de Eneias aos seus homens no Livro I da Eneida; e (c) outro eco virgiliano vem do panorama da história bíblica dos dois últimos livros do Paraíso Perdido em comparação com a visão da história romana dada a Eneias na Eneida.
Milton escreveu um poema complementar, Paradise Regained, em 1671, dramatizando a tentação de Cristo.
Com Satanás, Pecado e Morte, Milton estabelece uma paródia da Divina Trindade – aquela destrói, enquanto esta cria. Seus membros unem-se no ódio, enquanto os da Divina são ligados pelo amor.
A teoria que Adão apresenta no Livro VII, quando questiona Rafael, é a teoria ptolomaica, uma teoria que naturalmente atrai os homens porque confirma a evidência de suas impressões sensoriais. Esta teoria, que sustentava que a Terra era o centro do universo e que o Sol e as estrelas giravam em torno da Terra, estava para ser desafiada no século XVII pela teoria copernicana. Rafael, na sua resposta à pergunta de Adão, sugere esta teoria mais recente: que o Sol é o centro do cosmos e que a Terra circunda o Sol.
Assim como o Filho é gerado do Pai e o Pecado brota da cabeça de Satanás, Eva é feita da costela de Adão. Ela não surge adulta do lado de Adão, mas é moldada por Deus com material vindo de Adão. Eva é da substância de Adão, assim como o Filho é da substância do Pai. E o relacionamento entre Adão e Eva é como o relacionamento entre o Pai e o Filho. É uma relação de amor, e o amor é criativo. Do amor de Adão e Eva surgirá a nova raça da humanidade, e essa é a raça que completará o triunfo de Deus sobre Satanás, permitindo que o Messias nasça como Jesus Cristo. Notar, também, que esta relação entre Adão e Eva, o amor que partilham, é o que Satanás mais inveja e mais gostaria de destruir, de acordo com os seus discursos no Livro IV. Se ele conseguir fazer com que Adão e Eva se odeiem, o plano de Deus para derrotar Satanás terminará, pois não haveria uma nova raça para substituir os anjos caídos, nem haveria um redentor para a humanidade. Assim, o importante campo de batalha entre a Santíssima Trindade e a Trindade Satânica não é realmente o campo de batalha do Céu, descrito no Livro VI. É Adão e Eva. Se o que existe entre eles for amor, eles criarão vida e farão parte do reino da Santíssima Trindade. Se eles se odeiam, serão estéreis, morrerão sem descendência e farão parte do reino do Inferno. Teoria de Gênero, Gayzismo e Feminismo são infernais.
O crítico italiano Mario Praz (1896-1982), em The Romantic Agony, até hoje a obra mais interessante sobre o fascínio exercido sobre a literatura do século XIX por tudo o que é demoníaco, indica o início desse processo na caracterização peculiar de Satanás oferecida por Milton em Paraíso Perdido. “Foi Milton quem conferiu à figura de Satanás todo o fascínio do rebelde indômito que já pertencia às figuras do Prometeu de Ésquilo e do Capaneu de Dante”. De fato, muitos críticos e autores de espírito gnóstico desejaram enxergar o Satanás de Milton como algo "estranhamento belo", e.g. “Le plus parfait type de Beauté virile est Satan – à la manière de Milton” (Charles Baudelaire)
Hegel, com sua dialética do negativo, deu uma suntuosa veste teórica a Satanás. Para Hegel, o homem deveria pecar, deveria sair da inocência natural para se tornar Deus. Ele deveria realizar a promessa da Serpente: deveria conhecer, como Deus, o bem e o mal. Esse conhecimento “é a origem da doença, mas também a fonte da saúde, é o cálice envenenado no qual o homem bebe a morte e a putrefação, e, ao mesmo tempo, o ponto em que nasce a reconciliação, uma vez que se pôr como mau é em si a superação do mal”. Este é um exemplo dos anjos caídos discutindo filosofia no Pandemônio.
Importantes críticos, como T. S. Eliot (1888-1965) e F. R. Leavis (1895-1978) apresentam ressalvas a Milton e sua obra-prima. O problema, apontam, era que Milton, apesar de poderosamente auditivo, carecia de uma forte imaginação visual. Seus sentidos foram “definhados desde cedo pelo aprendizado dos livros” e sua cegueira aumentou uma tendência natural de depender do ouvido. Sua linguagem é artificial e convencional. Suas imagens são gerais, não particularizadas. Seu efeito ocorre apenas no ouvido. As palavras em conjunto não se iluminam, como acontece em Shakespeare. O estilo de Milton é retórico para que “ocorra um deslocamento através da hipertrofia da imaginação auditiva em detrimento da visual e tátil”. Paradise Lost deveria ser lido duas vezes, uma vez pelo som, outra pelo sentido; enquanto em Shakespeare ou Dante ambos podem ser apreciados simultaneamente. Também o acusam de exotismo pelo estilo latinizado de sua escrita.
“The end then of learning is to repair the ruins of our first parents by regaining to know God aright, and out of that knowledge to love him, to imitate him, to be like him, as we may the nearest by possessing our souls of true virtue, which being united to the heavenly grace of faith makes up the highest perfection.” – John Milton sobre a importância da educação, Of Education
“I must say, therefore, that after I had for my first years, by the ceaseless diligence and care of my father (whom God recompense!), been exercised to the tongues, and some sciences, as my age would suffer, by sundry masters and teachers, both at home and at the schools, it was found that whether aught was imposed me... prosing or versing, but chiefly by this latter, the style, by certain vital signs it had, was likely to live. [...] I began thus far to assent both to them and divers of my friends here at home, and not less to an inward prompting which now grew daily upon me, that by labour and intense study (which I take to be my portion in this life), joined with the strong propensity of nature, I might perhaps leave something so written to aftertimes, as they should not willingly let it die. [,,,] That if I were certain to write... there ought no regard be sooner had than to God's glory, by the honor and instruction of my country. [...] I applied myself to that resolution... to fix all the industry and art I could unite to the adorning of my native tongue; not to make verbal curiosities the end (that were a toilsome vanity), but to be an interpreter and relater of the best and sagest things among mine own citizens throughout this island in the mother dialect. That what the greatest and choicest wits of Athens, Rome, or modern Italy, and those Hebrews of old did for their country, I, in my proportion, with this over and above, of being a Christian, might do for mine.” – John Milton sobre a atividade de escritor, The Reason of Church Government urged against Prelaty
“For books are not absolutely dead things, but do contain a potency of life in them to be as active as that soul was whose progeny they are; nay, they do preserve as in a vial the purest efficacy and extraction of that living intellect that bred them. [,,,] I know they are as lively and as vigorously productive as those fabulous dragon's teeth... [...] Many a man lives a burden to the Earth, but a good book is the precious life-blood of a master spirit, embalmed and treasured up on purpose to a life beyond life.” – John Milton sobre a importância dos livros, Areopagitica