Personagens Principais Stiepan Vierkhoviénski – intelectual decadente, sustentado por Varvara, preceptor de Nikolai Piotr (Pietrucha) Vierkhoviénski – filho de Stiepan, líder da Sociedade, 27 anos Varvara Stavróguina – viúva, aristocrática e rica, financia os encontros do Círculo Nikolai Stavróguin – filho de Varvara, libertino, ateu, duelista Lizavieta (Liza) Túchina – 22 anos, bonita, aristocrática, foi aluna de Stiepan Andreêi e Yúlia von Lembke – novos governadores da província Dária Chátova – irmã de Chátov, protegida de Varvara, bom coração, apaixonada de Nikolai Aleksiêi Kiríllov – 27 anos, ateu, engenheiro, solitário e suicida Personagens Secundárias Anton Lavriéntiev Gorovov – narrador, muito próximo de Stiepan, do Círculo Ivan Óssipovitch – velho governador da província, parente de Varvara Ivan Chátov – socialista e depois idealista russo, é do Círculo, dissidente da Sociedade Mária Chátova – mulher de Chátov, com quem só ficou seis semanas Virguinski – funcionário pobre, humanista, do Círculo e da Sociedade Ignat Lebiádkin – capitão, falsário, surra a irmã, apaixonado por Liza, frequenta o Círculo Mária Lebiádkina – irmã de Ignat, aleijada e louca, casada secretamente com Nikolai Serguiêi Lipútin – funcionário, ateu, intriguento, do Círculo de da Sociedade Praskóvia Drozdova – generala, amiga de Varvara, mãe de Liza Sêmion Karmazínov – escritor conhecido, parente da nova governadora Mavrikii Drozdov – pretendente de Liza, capitão, sobrinho de Praskóvia, 30 anos Chigalíov – cunhado de Virguinski, carrancudo, soturno, da Sociedade
Interpretação Naquele que é considerado por muitos como o maior romance político já escrito, Dostoiévski faz o encontro de duas gerações russas: de um lado a geração dos anos 1820 representada por utopistas como Stiepan, Varvara e Yúlia (ateísmo militante) e do outro os messiânicos dos anos 1840 retratados como os membros do Círculo. Enquanto os primeiros contemplam um modelo de mundo recordado e destacado da realidade, sem ambições revolucionárias, os últimos ambicionam o poder e a instauração daquele mundo utópico. Vemos a passagem do pensamento utópico ao pensamento messiânico, ou do socialismo utópico ao socialismo “científico” (adjetivo que empregavam dado o peso que continha no século XIX – depois trocaram este termo por uma falsa superioridade moral).
A geração de Stiepan abandona a transcendência e dessacraliza o mundo, gerando monstros como Piotr e Nikolai que, acreditando-se os novos deuses (eles não têm pai no sentido místico), ambicionam fazer o paraíso terrestre, gerando apenas morte e destruição. Era o encontro entre os demônios ativistas do presente com os demônios românticos do passado, considerados pelos primeiros como ultrapassados. O messianismo é filho, um produto da utopia. O messiânico não sabe como vai ser o futuro mas age como se fosse hoje. O messiânico é dinâmico. Ele assume a “realidade é má” e age sobre ela. O messiânico projeta o fim temporal da história.
A dessacralização do mundo produz duas possibilidades: (a) a perplexidade que, positivamente, pode levar a uma nova percepção do divino, ou (b) o tédio (absurdidade) que leva a uma multiplicidade de alternativas como a auto-divinização (Kiríllov), divinização coletiva do povo (Chátov), ato diabólico – invenção de um novo mundo (Piort – rebelado metafísico – o próprio Diabo), psicopatia (Nikolai – diante da absurdidade da vida comporta-se primeiro como Dom Juan e depois como Meursault, ambas personagens na visão de Albert Camus)
Stiepan rompeu com a realidade, acredita-se algo que ele não é, sua projeção utópica (e.g. o homem nasce bom e é corrompido pela sociedade) o afasta da verdade e o leva a só enxergar o erro na realidade como o acerto em sua projeção utópica. Ele vive num mundo ilusório de beleza e no mundo real de infâmias e sofrimentos. A ideia utópica é estática. A ambição de fama já está dentro da dialética messiânica, apesar dele ser um utópico – a fama é mais importante do que a realidade que foi transferida para a imagem que terá nas futuras gerações. Varvara o ajuda a construir sua imagem (fama). Imagem esta construída em função do movimento futuro, pois este lhe permitirá a fama futura ou até póstuma.
Stiepan enlouquece ao compreender que aquele movimento era produto do seu pensamento. E então, já louco, percebe a realidade – igual ao rei Lear. Stiepan (o único que se regenera) desperta ao final e se salva. A salvação só pode ser individual e não coletiva.
O misterioso desaparecimento de Piort indica que ele seja o próprio Diabo. Conforme indica a epígrafe do livro, para Dostoiévski, espíritos demoníacos se apoderaram de uma gentalha sequiosa de poder para lançar a Rússia no desespero e no caos. Obra fundamental para a não só para a compreensão de todas as forças da cultura russa do século XIX, mas da própria cultura ocidental e cristã.
Notas
Fiódor Dostoiévski (1821-1881) nasceu em Moscou, Rússia. Estreia literariamente em 1846 com Gente Pobre e O Duplo.
Principais obras: Crime e Castigo (1866), O Idiota (1868), Os Demônios (1871), Os Irmãos Karamazov (1878) e Memórias do Subsolo (1864). Outras boas obras de Dostoiévski não incluídas nas Expedições Pelo Mundo da Cultura: Humilhados e Ofendidos (1861) e Recordação da Casa dos Mortos (1855).
Memórias do Subsolo é o único livro do autor com conotações filosóficas.
Joseph Frank é o maior biógrafo de Dostoiévski (obra em cinco volumes – editados pela EDUSP no Brasil).
Segundo Otto Maria Carpeaux “existem poucos escritores cuja obra tenha sido tão tenazmente mal compreendida como a de Dostoiévski”.
O jovem Dostoiévski participou do círculo revolucionário Petratchévski, pelo qual foi preso e condenado a morte. Passa quatro anos na Sibéria após ter sua morte comutada (perdão comunicado apenas no último instante).
A narrativa de Os Demônios inspirou-se no episódio de 1868 quando Serguiêi Nietcháiev (Piort no romance), discípulo de Bakúnin, e outros quatro membros da organização clandestina Justiça Sumária do Povo (narodnaian rasprava) matam o colega Ivan Ivánovitch Ivanov (Chatóv), suspeito de traição ao plano de provocar uma insurreição na Rússia na primavera de 1870. As ideias de Nietcháiev são apresentadas no seu Catecismo Revolucionário.
Serguiêi Nietcháiev foi considerado por Lenin como o primeiro teórico russo da insurreição. Lenin se insurgiu contra esta obra de Dostoiévski considerando-a “exemplo de imundice reacionária”.
Fidel Castro lia e relia Os Demônios na prisão (pela tentativa frustrada de tomar o quartel de Moncada), fascinado pelo completo amoralismo revolucionário de Piort.
O nome da cidade onde a narrativa se desenvolve não é identificada no romance. O enredo se desenrola na época em que o livro foi escrito (1870-1871).
Dostoiévski foi perseguido pelo crítico Bielinski que o acusava de ter “abandonado a arte social”.
Seguno o autor, Nikolai “corresponde exatamente a desses rebentos de famílias distintas degradadas pela canalhice, que o Conde Tolstói descreve em Infância e Juventude.”
Kirílov apresenta ideias nietzschianas – quer divinizar o homem. É também a inspiração de Albert Camus para sua opção de suicídio no Mito de Sísifo.
Kiríllov incorpora em si o bem futuro – quando a noção do bem é jogada para um futuro histórico impossibilita a definição de bem e mal no presente – se Deus não existe tudo é permitido.
Internacional ou Associação Internacional dos Trabalhadores foi fundada em 1865, sob inspiração de Karl Marx, em Londres, com o objetivo de articular os esforços dos grupos revolucionários nacionais.
Entre os utopistas reais da geração de 1820s estariam Aleksandr Herzen, considerado o pai do socialismo russo, e Ivan Turguêniev, cuja personagem Bazarov seria o pai espiritual de Nietcháviev.
A personagem Sêmion Karmazínov teria o intuito de ridicularizar Ivan Turguêniev.
O crítico literário Yuri Kariákin (membro do PC) revelo que o Prof. Leskov descartou o clima de perplexidade de seus pares diante da revelação dos crimes do stalinismo pois tudo aquilo já estava descrito em Os Demônios: “Eu quase fui preso em 1936 por que li esse romance. Aquelas eram noites de medo e de muito esclarecimento: liamos escondidos e interrompíamos a cada página: Não é pode ser! Não é possível! Como ele poderia ter conhecimento de tudo isso com tanta antecedência e sem conhecer a Rússia Soviética?”
A falsa superioridade moral do movimento esquerdista os levam a acusar qualquer erro dos outros sem nunca admitir seus próprios erros, que via de regra são muito mais graves.
Síndrome de Estocolmo: incapaz de compreender um mal inconcebível em si a vítima transforma-o em bem. A síndrome do indulto (esperança de salvação na última hora) era comum nos campos de concentração conforme observado por Viktor Frankl.
Dom Hélder Câmara não seria uma pessoa má, mas incapaz de ver o mal na falsa moral esquerdista, prostrou-se diante daquele movimento.
O homem tem a potência do maior bem e do pior mal. Precisamos incorporar dentro de nós o bem para podermos olhar o mal de frente e derrotá-lo.
Nada mais perigoso do que as ideias erradas. O intelectual pode trazer a desgraça ao mundo.
O russo é uma língua de prosódia proparoxítona. Em português é paroxítona e em francês é oxítona.
"l’embarras du choix” = dificuldade de escolha
O Homem Revoltado de Albert Camus é a continuação natural de Os Demônios.
O PSDB é Vierkhovienski pai; o PT é Vierkhovienski filho.
Trechos da Obra
Pensamento da personagem Piotr: “A finalidade do homem é lutar pela maior segurança dos seus interesses. A satisfação do eu está acima do Estado, da moral, da religião, e da sociedade. Por isso, a socialização, enquanto não se estabelecer, pode-se valer da força, da mentira, do assassinato e do roubo. Cada membro do núcleo vigia uns aos outros. Todos espionam, e isso não é espionagem, pois tende a uma finalidade superior. No extremo, o melhor é a revolta e o assassinato, pois um fim superior justifica todos os meios. Mas acima
de tudo – enfatiza o Netchaiev de Dostoiévski – é necessário lutar pela igualdade absoluta. Para isso, a primeira coisa que se há de fazer rebaixar o nível da cultura, da ciência e do talento. O alto nível da ciência e da cultura só é acessível às grandes capacidades. E as grandes capacidades, que produzem mais danos que benefícios, sempre afrontaram o poder e tornaram-se déspotas. Quando se perceber num indivíduo atitudes elevadas ou excepcionais, deve-se expulsá-lo do convívio social e, havendo margem, matá-lo. A Cícero cortaremos a língua, a Copérnico a arrancaremos, e a Shakespeare, o mataremos a pedradas.
Piort sobre a organização do grupo: “Primeiro vem a hierarquia: não há nada mais poderoso do que o partido burocrático. Invento títulos e funções – secretários, tesoureiros, presidentes, emissários secretos... Em seguida, vem o sentimentalismo que em nosso país é o mais eficaz agente de propaganda socialista. Depois vêm os patifes, que são sempre muito úteis. E, no fim, a principal força, o cimento que liga tudo: o medo de se ter opinião própria”.
Monólogo com que Piot tenta convencer a Nikolia a aderir à violência evolucionária: “Nós criaremos uma revolução!... Olha, sabe que somos terrivelmente fortes? Os “nossos” não são apenas os que invadem, incendeiam ou executam golpes clássicos. O mestre que zomba de Deus e da Pátria é um dos “nossos”. Jovens que, para experimentar novas sensações, matam um inocente, são dos “nossos”. O procurador que, no Tribunal, treme por não se mostrar um liberal é também dos “nossos”. Entre administradores e literatos, grande número são dos “nossos”, com o agravante de que eles próprios não o sabem... Quando deixei a Rússia, o crime era considerado uma loucura; volto, e já o crime é tido como o próprio bom senso, quase um dever, no mínimo um gesto de protesto... Com a família, ou o amor, aparece o desejo de propriedade. Mataremos esse desejo: incrementaremos o vício, escândalos e a delação. Reduziremos tudo ao mesmo denominador, à igualdade absoluta. Só o necessário será necessário, eis a nova divisa. Antes, é preciso gerar convulsões, e nós, os líderes, vamos provocá-las! Mas, o fundamental é que o povo acredite que temos consciência dos nossos objetivos, enquanto o governo apenas agita uma massa nas trevas e bate nos seus próprios aliados. Espalharemos incêndios... criaremos lendas... conspiradores pegarão em armas... Então começara a desordem! O mundo marchará numa confusão jamais atingida. As trevas cobrirão a Rússia e a terra chorará seus antigos deuses.”
Radicalismo revolucionário bolchevista profetizado por Chigalev: “Como é necessário fixar a futura forma social, sobretudo agora que estamos resolvidos a passar da expectativa à ação, proponho o sistema por mim idealizado com respeito à organização do mundo. Devo confessar que a conclusão do trabalho contradiz sua premissa original: partindo de uma liberdade sem limites rematei o despotismo total. O que proponho, como solução final, é a divisão da espécie humana em dois grupos desiguais: um décimo da humanidade possuirá os direitos da personalidade e exercerá autoridade ilimitada sobre os outros nove décimos. Estes serão obrigados a perder a personalidade e se converterão em algo como um rebanho e, mediante obediência sem limites, poderão alcançar a inocência primitiva, o paraíso, onde, contudo, deverão trabalhar. Todas as medidas aqui propostas fundamentam-se em dados científicos, sendo por isso absolutamente lógicas. Julgo que nenhuma outra solução para o problema social poderá existir, senão a minha.