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Orson Welles (1915-1985)

"I want to give the audience a hint of a scene. No more than that. Give them too much and they won't contribute anything themselves. Give them just a suggestion and you get them working with you. That's what gives the theater meaning: when it becomes a social act."

– Orson Welles



George Orson Welles começou sua carreira como ator de teatro, depois acumulou função de diretor e redator de peças, e levou seu teatro para o rádio – foi no rádio que alcançou notoriedade com seu famoso trote de War of the Worlds no Halloween de 1938. Ele tinha apenas vinte e quatro anos quando, em 1939, assinou um dos contratos com a RKO Pictures para escrever, dirigir, produzir e estrelar dois projetos dando-lhe vasto controle, incluindo a edição final: o primeiro deste projetos foi Citizen Kane e o segundo The Magnificent Ambersons. Ambos filmes fracassaram financeiramente, e o segundo colocou Welles em incontornável atrito com o estúdio. Welles passaria o resto de sua carreira em Hollywood discutindo com vários produtores ou estúdios sobre as versões completas de seus filmes e sua direção não creditada nos filmes em que estrelou – desencantado com Hollywood o enfant terrible vai para a Europa no final dos anos 1940 onde atuou em filmes de outros diretores para angariara fundos para seus projetos (só retornou a Hollywood no final da década de 1950 apenas para realizar Touch of Evil).


A personagem central em muitos de seus filmes é um homem poderoso e egoísta que vive fora ou acima da lei e da sociedade. Essas personagens nunca são inocentes, mas parecem assombradas por uma inocência que perderam (como o Rosebud de Kane). O destino funesto do antagonista corrupto é frequentemente indicado por um prólogo ou sequência introdutória que prenuncia sua destruição. Estes temas da inocência perdida e do inescapável destino muitas vezes envolve os filmes de Welles com uma névoa de melancolia, o que serve para tornar essas personagens dignas de comiseração.


Mas é na sua inventividade, virtuosismo estilístico e experimentalismo inquieto que reside a maior contribuição de Welles para o cinema, Seu uso de narrativas elípticas, deep-focus, ângulos de câmera pouco usuais, lentes wide-angle para distorcer imagens, mise-en-scène elaborado, experimentos com a trilha sonora, e outras técnicas, sempre usadas para denotar algum sentido, impactaram tanto a produção como a teoria cinematográfica.


Como diretor de cinema Welles começou no topo com Citizen Kane e passou as décadas seguintes descendo até a obscuridade. “I started at the top, and worked down.” dizia Welles. Porém como ator, apresentador, contador de histórias, introdutor de celebridades, ou narrador, ele nunca esteve longe dos holofotes; ao longo de sua carreira, ele permaneceu um dos rostos e vozes mais reconhecidos na cultura pop. E como cineasta, sempre continuou em busca de projetos pessoais. Um herói de culto experimental por excelência, sempre alcançando o fracasso de forma brilhante – o eterno menino prodígio.


Seguem comentários sobre seus filmes mais interessantes:


Citizen Kane (1941): Após a morte do magnata editorial Charles Foster Kane, os repórteres lutam para descobrir o significado de sua última declaração: “Rosebud”. A narrativa é considerada como a história velada do magnata da mídia William Randolph Hearst, mas muitos dos detalhes da vida da personagem Kane também vieram de outros empresários, como Joseph Pulitzer e Samuel Insull, e alguns da própria vida de Welles.

O filme ficou aquém do esperado nas bilheterias, sendo canonizado ao longo dos anos a começar por sua exibição na Europa do pós-guerra. A singularidade de Citizen Kane reside na forma como a história é contada: o trabalho de câmera (com alguns ângulos aprendidos de John Ford), a fotografia com foco profundo, as transições de cena para cena, a abundância de detalhes imagéticos que servem para dar corpo a personagem de Kane, as longas tomadas explorando ao máximo o mise-en-scène e as performances dos atores, a mise-en-scène e iluminação austera (incluindo holofotes) emprestadas do teatro, e o revolucionário uso do som trazido da experiência radiofônica de Welles produziram um avanço dialético na história da linguagem cinematográfica. Como não trabalhava na indústria, Welles não havia internalizado as convenções hollywoodianas, muitas das quais eram basicamente maneiras sofisticadas de cumprir o cronograma e o orçamento, tendo seguido seus instintos ainda cinematograficamente puros. A abordagem também era pouco ortodoxa no auge da era de ouro de Hollywood, quando narrativas, personagens e visões morais claras reinavam. O enredo elíptico de Citizen Kane é construído em torno do enigma da personagem central, puxando-nos de um lado para o outro em relação ao seu caráter, sem nunca se resolver completamente, um exemplo do que poderia ser chamado de cinema brainworm – o tipo de filme que nos obceca e gira em nossos cérebros porque algum elemento-chave parece estar faltando ou oculto. Isto deu margem a uma série de interpretações, incluindo as bizarras versões feminista (como a de Laura Mulvey) e marxista (exemplificada pela de John Hutnyk). Mas creio que a chave interpretativa do filme está em Marcos 8:36: “Pois que aproveitara o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?


The Magnificent Ambersons (1942): Jovem e mimado herdeiro da decadente fortuna dos Amberson se coloca entre sua mãe viúva e o homem que ela sempre amou. Baseado no romance homônimo de Booth Tarkington sobre o declínio de uma família aristocrática provocado pela Revolução Industrial. O estúdio RKO cortou 50 minutos do filme e acrescentou um final feliz enquanto Orson Welles estava fora do país – infelizmente a versão original foi perdida. Mas mesmo nesta forma truncada o filme é memorável, uma oportunidade de saborear o clima emocional da América na virada do século XIX para o século XX. Após a revolução cinematográfica de Citizen Kane, The Magnificent Ambersons torna-se a consagração de um novo modo de narração na tela. A atriz Agnes Moorehead interpreta a amarga e histérica tia solteirona de forma poderosa e hiper-realista numa performance clássica. Notar o uso das conversas dos habitantes da cidade similar à do coro no teatro grego no auxílio do desenvolvimento da narrativa.


The Stranger (1946): Investigador da Comissão de Crimes de Guerra (interpretado por Edward G. Robinson) viaja para Connecticut para encontrar um infame nazista (interpretado por Orson Welles). Um thriller noir com a criatividade e estilo visual típicos de Welles. O roteiro acaba nos obrigando a pensar em até que ponto o amor por uma pessoa pode nos levar a descuidar de suas falhas morais e violar nossos próprios princípios éticos. Foi o primeiro filme americano mainstream a apresentar imagens de campos de concentração nazistas após a Segunda Guerra Mundial.


The Lady from Shanghai (1948): Fascinado pela linda Sra. Bannister (interpretada por Rita Hayworth, então esposa do diretor), o marinheiro Michael O'Hara (interpretado por Welles) se junta a um bizarro cruzeiro de iate e acaba envolvido em uma complexa trama de assassinato. Thriller espirituoso, bizarro e alucinatório de Welles. Mais um filme noir com a estética autoral do diretor. O tiroteio na sala dos espelhos é a sequência mais famosa, mas há outros momentos igualmente memoráveis. Notar a curiosa alusão à paranoia nuclear.


Macbeth (1948): Macbeth recebe a profecia de um trio de bruxas de que um dia ele se tornará rei da Escócia. Consumido pela ambição e estimulado a agir por sua esposa, Macbeth assassina seu rei e assume o trono para si. O diretor faz uma abordagem estilizada e surrealista da peça de Shakespeare – “a bold charcoal sketch of the play” nas palavras de Welles. Nota-se que foi filmado com limitados recursos em apenas 21 dias – é cru, algumas atuações deixam a desejar e os cenários foram desenhados pelo próprio diretor. Mesmo assim há algumas tomadas visualmente impressionantes que forneceram ângulos e ideias de iluminação a muitos outros cineastas. Numa das modificações na trama original introduzidas por Welles várias pequenas personagens são condensadas na figura do Holy Man, enfatizando ainda mais a contraposição do Céu e da Terra simbolizada na peça.


Othello (1952): Otelo é levado a pensar que sua nova esposa, Desdêmona, está tendo um caso com seu tenente Miguel Cássio, quando na realidade tudo faz parte do esquema de um alferes amargo chamado Iago. Welles faz sua versão cinematográfica da peça homônima de Shakespeare com uma bela fotografia em preto e branco e uso único e eficaz da arquitetura. O filme foca em demasia nas personagens, mas ainda é possível entrever o simbolismo da peça do imortal bardo. Apesar das graves limitações orçamentárias (Welles arcou pessoalmente com todos ps custos ao longo de três anos de produção) o filme arrebatou a Palma de Ouro no festival de Cannes daquele ano.


Confidential Report (1955): Esquivo bilionário (interpretado por Welles) contrata um contrabandista americano para investigar seu passado, levando a uma vertiginosa aventura pelo mundo. Roteiro desenvolvido sobre três episódios do show de rádio Man of Mistery de Welles. Melodrama divertido, bizarro, enigmático, espirituoso e, acima de tudo, muito tolo – assemelha-se a uma biografia ficcional pulp sobre o Poder conectando líderes mundiais e cidadãos mais ricos do mundo às suas raízes corruptas. Mas Welles consegue demonstrar sua habilidade em compor um filme visualmente belo com um baixo orçamento. Usando fotografia em preto e branco, closes grotescos, uma infinidade de ângulos de câmera e um estilo barroco aliciante, Welles entregou um filme repleto de falhas, mas visualmente marcante – uma espécie de tour de force amador, obra de um mestre que não tem mais paciência nem dinheiro para se dedicar à maestria. E, como tal, começa a mostrar uma nova maneira despojada de fazer filmes – um predecessor da Nouvelle Vague (os críticos-diretores da Cahiers du Cinema consideraram Confidential Report um dos 12 melhores filmes já realizados até 1958).


Touch of Evil (1958): Thriller baroco sobre assassinato, sequestro e corrupção policial em uma cidade fronteiriça mexicana. Inspirado no romance Badge of Evil (1956) de Whit Masterson. A pedido do astro do filme (Charlton Heston) Welles voltava a dirigir um filme em Hollywood após uma década. Uma trama sobre a crescente dificuldade de fazer justiça sob um arcabouço jurídico cada vez mais limitante sintetizada nas falas de Vargas (interpretado por Heston): “Who is the boss? The cop or the law?” e “A policeman's job is only easy in a police state.” Epítome e epitáfio do filme noir clássico. Excelente trabalho do diretor de fotografia Russell Metty. Destaque para a longa sequência de abertura. Importante ver o filme na montagem de 1998 que seguiu as instruções de edição de Welles.


The Trial (1962): Modesto funcionário de escritório é preso e julgado, mas nunca é informado do que é acusado. Inspirado na obra homônima de Franz Kafka. Tecnicamente é uma conquista visual, com uso exuberante de posicionamento e movimento de câmera e iluminação inventiva. Pena não deixar transparecer a culpa da personagem central da obra kafkiana, ou seja, o pecado original.


Chimes at Midnight (1965): Quando o rei Henrique IV sobe ao trono, seu herdeiro, o príncipe de Gales, faz amizade com Sir John Falstaff, um velho mentiroso, obeso e farrista. Através dos olhos de Falstaff vemos o reinado do rei Henrique IV e a ascensão de Henrique V. Baseado na peça Five Kings escrita pelo próprio Orson Welles condensando cinco peças de Shakespeare: Henry IV Part I, Henry IV Part II, Henry V, Richard III e The Merry Wives of Windsor. Neste seu último filme ficcional Welles adapta para as telas o processo alquímico de renascimento do espírito do velho rei (Henrique IV) na pessoa do novo soberano (Henrique V), de como príncipe Hal, futuro Henrique V, se transforma de um irresponsável bon vivant em um rei pio, sábio e capaz, obtendo a vitória sobre si mesmo – a indispensável rejeição de Falstaff simboliza a morte do dragão. Notar a longa batalha de Shrewsbury que foi detalhadamente estudada por Mel Gibson antes de dirigir Braveheart (1995).


F for Fake (1973): Documentário sobre fraude e falsificação. Uma estranha colagem de um documentário filmado por outro diretor (François Reichenbach), algumas filmagens de Welles de empreendimentos anteriores e a própria narração de Welles. O diretor explora a relação ambígua entre verdade e sonhos focando nas histórias de dois falsários: o escritor Clifford Irving (falsificou uma autobiografia do milionário Howard Hughes) e do pintor Elmyr de Hory. Mais do que isso, ele confronta diretamente a “mentira” essencial sobre a qual os filmes são construídos: o processo de edição. Num certo sentido, ele encontra-se numa posição semelhante à dos cineastas russos após a Revolução; com pouco dinheiro e recursos técnicos, ele reorganiza um filme preexistente. O filme também permite a Welles comentar sobre a relação entre arte e originalidade, criticar a arte moderna fantasiada por experts, e os engôdos do mercado de obras de arte. Ao final, diante da magnificência da catedral de Chartres, de autoria desconhecida, Welles diz que “maybe a man’s name doesn’t matter that much”. O diretor parece insinuar que os presentes problemas das artes são consequência da perda da transcendência (quando artistas apenas buscava homenagear a Deus) com o avanço da imanência moderna (ver Desconstruir Duchamp de Affonso Romano de Sant’Anna).

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