“A República se debuxa com a extinção dos nomes nacionais, com o achatamento geral da inteligência no governo e nos corpos deliberativos, com a ostentação habitual da nudez nos escândalos reinantes, com a consagração da soberania da ignorância, com a solene proclamação do princípio da competência da incapacidade universal nos chefes de Estado, nos ministros, nos partidos, nos árbitros da situação, com a guerra, enfim, à justiça, enxovalhada com o título de ditadura pelos mais servis cortesãos de todas as ditaduras no poder, das armas e do Tesouro.” – Rui Barbosa (1849-1923), discurso no Senado, 30/12/1914
Os bacharéis que fizeram a República em 1889 viveram um sentimento bastante difundido de remorso em relação à própria atuação histórica, o que seria uma situação verdadeiramente edipiana, de revolta de filhos contra pais. Esta é a análise central do livro O Patriarca e o Bacharel, de Luís Martins, retratando como os homens que fizeram a República passaram a questioná-la ou, até, tornaram-se defensores da monarquia e de D. Pedro II. Martins usa como fonte álbuns e documentações privadas e livros de republicamos de primeira hora, além de recorrer a Gilberto Freyre e às ideias de Freud para analisar a política brasileira naquele momento crucial.
Nas décadas de 1850 e 1860 certos fatos alheios a política impactaram a psicologia social: inauguração das primeiras estradas de ferro e certas indústrias urbanas dado o gênio empresarial de Mauá, disseminação do ensino superior, e o arrebatamento da juventude pelas ideias românticas importadas da Europa. Igualdade, fraternidade e liberdade eram como palavras mágicas cantadas em todos os tons pela juventude acadêmica, pelos literatos mais novos e pelos professores positivistas. O pensamento liberal agigantava-se e tomava forma concreta e hostil ao regime monárquico com o manifesto republicano de 1870.
Deu-se o choque de duas gerações, o fazendeiro e o bacharel. Num momento decisivo da evolução brasileira – segunda metade do século XIX –, estabelecia-se um conflito de concepções, de mentalidade, de moral e de posição diante dos problemas nacionais. Um conflito radical entre o homem rural, conservador, escravocrata, monarquista, de gostos clássicos, e o indivíduo mais jovem, urbano por excelência, liberal, republicano, de tendências românicas. O confronto era ainda exacerbado pela excessiva autoridade que o patriarcado outorgava a figura paterna, tendo por consequência uma reação violenta dos filhos.
Concomitantemente D. Pedro II foi ficando com os velhos tempos, simbolizando uma mentalidade retrógrada e uma concepção política anacrônica. Inicialmente vanguardeiro, D. Pedro II encarnou o espírito retrógrado e conservador na segunda metade do seu reinado como indicaria sua má vontade contra Mauá e muitas reformas sempre adiadas como a questão federativa, o casamento civil, a extinção do Senado vitalício, a responsabilidade dos ministérios e a prática parlamentarista de que o rei reina e não governa – todas grandes conquistas progressistas do país se processaram à margem da iniciativa imperial. A abolição só se fez no penúltimo ano da Monarquia e sob a irresistível pressão da vontade popular. D. Pedro II passou a encarnar o grande símbolo paternal em contraposição à juventude liberal, revolucionária e romântica.
Crescia o conflito inconsciente entre o homem rústico de um lado e o homem urbano do outro, entre o fazendeiro e o bacharel, entre o pai e o filho. A campanha republicana se concretiza na reação antipaternal contra a figura do imperador que simbolizava coletivamente todos os atributos paternais. D. Pedro II representava o pai e a massa revolucionária composta de filhos possuídos de instintos parricidas.
Uma vez proclamada a República, a rebelião liberal começou a se amortecer sentimentalmente num verdadeiro complexo de remorso, sintetizado no desencantado slogan “não era a República dos meus sonhos”. Vários republicanos históricos se arrependeram abertamente, e a Primeira República (1889-1930) viveu sempre uma notável instabilidade nervosa manifestada em constantes comoções armadas, golpes de estado, lutas fratricidas, discussões acerbas e acusações recíprocas – não passava um presidente que não tivesse que dominar uma revolução. O Império foi um longo período de paz, apenas perturbado por pequenos intervalos de luta. A República foi precisamente o oposto.
O autor lista alguns dos republicanos históricos que expressaram seu remorso, destacando-se os nomes de: Saldanha Marinho (autor do slogan acima), Aristides Lobo, Euclides da Cunha, Quintino Bocaiúva, Lúcio de Mendonça, J. J. Seabra, Rui Barbosa, Afonso Celso, Joaquim Nabuco, Martim Francisco, Oliveira Lima, e padre João Manuel.
Os brasileiros fatalizados pelos acontecimentos de que foram atores, pela forma que a figura paterna do imperador foi deposta e expulsa do país, se viram inconscientemente forçados a buscar um substituto para o pai sacrificado. Talvez daí venha nossa tendência para o individualismo político, que corresponderia à procura do herói capaz de preencher as funções paternais suspensas pela revolução.
Essa tendência para individualizar a política nos tem levado a uma espécie de caudilhismo latente onde, na imaginação popular, o indivíduo ocupa o lugar que deveria ser de ideias e programas. Daí tantos “ismos” ligados a nomes de pessoas sem conteúdo ideológico senão o da admiração incondicional pelo ídolo. Nossos partidos políticos, destituídos de ideias e princípios, vivem das seitas formadas em torno de individualidades dominantemente paternais que assumiriam o caráter de “herói mítico” substituto do Pai sacrificado.
Tal “ciclo heróico” caracterizou-se pelo “florianismo”, o “pinheirismo”, o “epitacismo”, o “bernardismo”, o “prestismo”, o “getulismo”, e mais hodiernamente, o “lulismo” e o “bolsonarismo”. Esses chefes seriam projeções sobreviventes do Pai, encarnado na figura patriarcal de D. Pedro II.
O Brasil só viverá um regime verdadeiramente democrático quando o povo amadurecer espiritual e intelectualmente a ponto de estruturar a sociedade em bases fraternais, colocando o bem comum acima de interesses ignóbeis pessoais e grupais.
O autor correlaciona o arrependimento expresso por tantos revolucionários republicamos com o complexo de Édipo teorizado por Sigmund Freud como explicação para a origem do totemismo nas hordas primitivas.
Ocorre que o complexo de Édipo não passa de uma especulação freudiana inspirada nas especulações de William Robertson Smith (1846-1894), que por sua vez trabalhou sobre as especulações de John Ferguson McLenna (1827-1881) e Charles Darwin (1809-1882). A teoria edipiana de Freud é resultado de conjecturas sobre suposições.
Outra possível (e preferível) linha de análise remeteria a Os Dois Corpos do Rei de Ernst H. Kantorowicz (1895-1963) que estuda a forma como teólogos, historiadores e juristas medievais entendiam o rei como indivíduo mortal e, também, uma instituição transcendente. O rei teria dois corpos: (1) corpo individual como homem, e (2) aspecto simbólico de corpo da nação em forma de indivíduo.
A deposição do imperador também teria sido um rebaixamento da nação que perdia sua corporificação mítica num patamar hierárquico mais elevado. A forma torpe com que D. Pedro II foi tratado teria jogado uma maldição sobre a nação – toda queda de um governante consagrado reproduziria a queda original do homem.
Como nas Peças Bolingbroke de Shakespeare, o modo pelo qual a República ascende ao “trono” desfere uma maldição sobre ela: pairaria sobre o Brasil esta maldição. O crime de Bolingbroke será expiado na figura de seu filho Henrique V, um rei pio, sábio e capaz. Será que algum dia o povo brasileiro conseguirá remir-se do estigma da coroa usurpada em 1889? Conseguiremos formar um corpo político pio, sábio e capaz que corporifique miticamente nossa nação?
Notas
Luís Martins (1907-1981) nasceu no Rio de Janeiro.
Jornalista, poeta, romancista e crítico de arte, foi por 35 anos cronista de O Estado de São Paulo.
O Patriarca e o Bacharel, escrito em 1942, é publicado na Revista do Arquivo Municipal em 1944, e sai em livro apenas em 1953.
As paixões envolvendo o embate entre Monarquia e República dificultam traçar o perfil fidedigno de D. Pedro II. Para Luís Martins os defeitos do Imperador, i.e. a mente pouco brilhante, a teimosia e a atuação política centralizadora, são eclipsados por sua honestidade, sobriedade e genuíno amor por sua nação e seu povo.
O sentimento de remorso poupou os líderes republicanos positivistas que cultuavam miticamente a figura de Augusto Comte, que agiu psicologicamente como Marx agira para os comunistas russos que depuseram o czar.
A questão religiosa de 1872 colocou em conflito o Imperador e a Igreja Católica (na figura dos bispos Dom Vital e Dom Macedo Costa). Era o embate de dois poderes igualmente paternais, daí a grande comoção que causou.
Os moços românticos, bacharéis liberais acostumados a vida urbana, não mais se adaptariam as duras necessidades da terra. Nisso talvez se encontre a razão de inúmeras famílias tradicionais perderem sua grandeza nas mãos inexperientes de seus herdeiros.
Teoria Totêmica: O macho ancestral que dominava a horda primitiva não permitia aos seus filhos as mulheres que lhe pertenciam, provocando a revolta dos irmãos que matavam o pai, devoravam-no (“comida totêmica”) e punham fim à existência da horda paterna. Após o parricídio adviria o remorso e um período turbulento, esmagados que estariam os irmãos pela necessidade de expiar o crime cometido. O sentimento de culpa e remorso, exigindo a expiação, teria criado as restrições morais, seria a base das religiões e a pedra angular da evolução social da humanidade.
O brasileiro padeceria de um complexo colonial que explicaria sua instintiva posição de inferioridade diante do estrangeiro, na ânsia que se põe em mostrar-se civilizado diante dele, na sofreguidão em que lhe acata os elogios e na profunda mágoa que lhe causa suas restrições.
Lutero também padeceu de remorso por seu ataque à Igreja, tendo no fim da vida confessado que “a Igreja que eu fiz é pior do que a anterior”, ou seja, sente que destruiu algo que não era para destruir – era melhor reformar a Igreja desde dentro em vez de criar uma outra. Este arrependimento imita o fenômeno apontado por Luís Martins. Esta culpa mal confessada existente dentro da alma protestante explicaria os excessos do seu moralismo.
Todos os movimentos de massa são decorrentes da nefasta Revolução Francesa: Liberdade → Liberal: consolidar direitos civis e políticos. Igualdade → Socialista: estender a revolução ao campo econômico. Fraternidade → Nacionalista: lealdade do súdito passa à nação (povo com irmãos).