“Sei que tudo podes, e que nenhum pensamento te é oculto. Quem é esse que falto de ciência encobre o conselho? Por isso eu tenho falado nesciamente, e o que sem comparação excedia minha ciência.” (42:2-3) – Jó reconhece sua ignorância sobre os desígnios de Deus
“Há muita coisa mais no céu e na terra, Horácio, do que sonha a nossa pobre filosofia.” – Hamlet (Ato I – Cena V)
Jó não conseguia entender a razão da sucessão de eventos que o levou ao absoluto sofrimento, e seus três supostos amigos acreditavam que algum mal ele deveria ter feito para merecer aquele calvário.
A grande questão levantada pela história de Jó refere-se ao destino, e a inquietude humana sobre o porquê de eventos nefastos assolarem pessoas boas e pessoas más não receberem o devido castigo. O destino também é tema central da Ilíada de Homero e a conversa entre Deus e Satã sobre Jó assemelha-se as conversas dos deuses olímpicos sobre as personagens do épico.
A resposta de Deus aos questionamentos de Jó é iniludível: “Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra?”. O homem não tem condição de abarcar os desígnios de Deus. Os grandes mistérios, mistérios de Deus, não nos são acessíveis e podemos apenas contemplá-los com veneração e admiração. A pretensão do homem moderno de ser capaz da onisciência apenas demonstra o quanto o mundo sucumbiu à soberba.
Na Ilíada Aquiles e Heitor mostravam que, diante do inescapável aspecto trágico da vida, humana os gregos aproximar-se-iam dos deuses quando fossem capazes de aceitar resignadamente seu destino e fazer o melhor possível. Encarar a vida com heroísmo, ser capaz de fazer o certo apesar do mal que te ameaça, é o único processo civilizatório possível. O ideal humano homérico é o heroísmo, a prática de atos de coragem.
Jó traz um novo homem ideal que se concretizará no cristianismo: o ideal humano é viver para Deus – viver sob seus desígnios, respeitando seus mandamentos. Tal reverência explica como a diminuta nação portuguesa construiu um império (ver Os Lusíadas de Camões), ou como os americanos forjaram sua nação (ver Democracia na América de Tocqueville),
O Mal não é produto de punição, mas uma realidade absoluta e inerente ao ser humano. Alemães e russos comportaram-se como os amigos de Jó, respectivamente diante da malignidade de Hitler (nazismo) ou Stalin (socialismo / comunismo), acreditando que deveria haver uma razão para seus governos fazerem, por exemplo, uso de campos de concentração. A resistência e afrontamento ao Mal só pode nascer da consciência humana. A moral, o instinto do bem e do mal, do belo e do feio, do verdadeiro e do falso são naturalmente inatos no homem (ver conceitos aristotélico de nous e tomista de sindérese). O Livro de Jó nos cobra esta consciência. O Mal não pode ser justificado, mas apenas combatido.
O conjunto de valores no confronto ao Mal compreende: (a) Justiça (abraçar a Lei de Ouro, a ética da reciprocidade), (b) Coragem (a disposição de levantar-se e defender o justo e verdadeiro), (c) Moderação (capacidade de compreender quando justiça decai a em legalidade e coragem perde-se na brutalidade), e (d) Sabedoria (conhecimento para reconhecer o que é a justiça, coragem e moderação) – são as virtudes católicas cardeais.
O Livro de Jó nos ensina que devemos ser humildes no encontro com o divino, que o sofrimento não é uma punição, mas parte da condição humana, e que somos insignificantes diante do Cosmo.
Notas
O livro de Jó faz parte da Bíblia judaica (incorporado à católica). Estima-se que tenha sido criado no século seguinte ao do exílio babilônico ocorrido entre 587 e 538 a.C. . Acredita-se que foi escrito para ajudar aos judeus entenderem o cativeiro da Babilônia.
O sentimento de dúvida da justiça divina é natural. Até Jesus assim sentiu na crucificação (“Pai, por que me abandonastes?).
Os amigos de Jó vinham de todas as partes, indicando que aqueles ensinamentos eram para todos os povos. Eles também representam o próprio Satã agindo sobre Jó, exigindo-lhe uma perfeição não-humana.
O diabo é inimigo do homem (e não de Deus, Ele não tem inimigos. A luta do Bem contra o Mal é maniqueísta – ver Maniqueu – Deus é a única força que conduz o mundo). O diabo quer que você não faça nada porque será imperfeito. As ideias de autocastração são exercícios diabólicos. Ele não quer que você cumpra os desígnios de Deus.
O diabo produz obstáculos para que o homem faça jus a sua ascensão – neste sentindo ele é uma espécie de personal trainer da sua alma. O diabo testa se Jó é merecedor de Deus – o mesmo que acontece com Fausto de Goethe.
O diabo está presente nos três níveis de realidade: (a) Angélica – como o personal trainer acima, (b) Sutil – aspectos sombrios e abismais. Energias negativas. Coisas com as quais não devemos mexer, e (c) Material – aspectos naturais (e.g. instinto homicida, tsumani).
Quando os homens perdem sua consciência e seus valores ficam desprotegidos diante das ideologias totalitárias (e.g. socialismo, nazismo, comunismo, fascismo) que, tal qual a ação demoníaca dos amigos de Jó, exigem perfeição dos homens. Estas ideologias colocam nas costas dos homens todos os males existentes, criando-lhes um sentimento de culpa inexistente e exigindo outorga-lhes o poder para erradica-los. Infernal soberba.
Totalitarismo – “a sociedade só se resolve se você fizer aquilo que eu estou mandando”. Uma forma diabólica que reduz tudo aos pequenos mistérios.
Falsas hipóteses para a injustiça contra Jó: (a) justiça não existe (pensamento de Albert Camus), (b) Jó é um bode expiatório (pensamento de René Girard), e (c) Deus é mau (pensamento gnóstico).
Assim com Orestes (ver Oréstia de Homero), Jó adquire sabedoria através do sofrimento.
Napoleão dizia que há dois poderes: o da espada e do espírito. E, que, no longo prazo, o espírito sempre vence a espada.
A consequência dos nossos atos individuais se estende na eternidade.
Profetas como Isaías e Jeremias nos ensinaram que não pode haver separação entre a moral individual e a coletiva. A imoralidade dos governantes conspurca a sociedade.
Beemot e Leviatã são dois monstros criados por Deus: o primeiro representa o poder do Cosmo, da ordem dos mistérios, e o segundo simboliza a humanidade querendo usurpar o lugar de Deus. Vivem em conflito – nunca haverá equilíbrio – e perecem no fim dos dias.