Personagens Principais Ulrich – ex-militar, engenheiro, matemático, 32 anos, tem sonhos de grandeza Agathe – irmã de Ulrich, seis anos mais nova Christian Moosbrugger – carpinteiro, assume seu crime mas não a responsabilidade Walter – amigo de infância de Ulrich, artista sem sucesso, “homem de qualidades” Clarisse – jovem brilhante, esposa de Walter, enlouquece Hans Tuzzi – secretário de estado, burguês de sucesso entre aristocratas Ermelinda (Hermine – Diotina) Tuzzi – esposa de Tuzzi, prima de Ulrich Paul Arnheim – prussiano, escritor de sucesso, riquíssimo (baseado em Walther Rathenau) Bonadea – casada, ninfomaníaca, amante de Ulrich Conde de Leinsdorf – motor da Ação Paralela (Franz von Harrach e Alois do Liechenstein) Stumm von Bordwher – general, participa da Ação Paralela , cômico (Maximilian Becher)
Personagens Secundárias Raquel – criada de Clarisse, bela Salomão – adolescente, mouro, criado de Arheim Leontine (Leona) – bela, 27 anos, cantora de teatro de variedades, amante de Ulrich Gottlieb Hagauer – professor, esposo de Agathe August Lindner – professor, ajuda Agathe, vaidoso de sua caridade (monstro Équidna) Melanie Drangsal – dama da sociedade concorrente de Diotina Friedel Feuermaul – poeta protegido de Drangsal (inspirado no poeta Franz Werfel) Siegmund – médico, irmão de Clarisse Meingast – filósofo, hospede de Walter e Clarisse (inspirado em Ludwig Klages) Leo Fischel – judeu, funcionário do Lloyd Bank Clementina e Gerda Fischel – esposa e filha de Leo Hans Sepp – estudante, namorado de Gerda
Interpretação “De que realidade estou a falar? Existirá uma segunda?” – Ulrich pensando consigo (Parte III – capítulo 45)
Segundo Eric Voegelin, nesta obra vemos a recusa do homem em aceitar a estrutura da realidade e o mistério de sua participação na eternidade – ruptura com a realidade. Retrata o processo de deformação da realidade. Cunha o termo segunda realidade para designar a imagem da realidade criada pelo homem quando em estado de alienação (construção fantasiosa em oposição à realidade da experiência – criação do homem de mentalidade ideológica em sua revolta metafísica). Se a primeira realidade é aquela onde o homem ordenado normalmente vive, a segunda realidade seria onde o homem animicamente doente vive, e portanto, em permanente conflito com a primeira realidade. A consequência deste conflito pode ser contemplativa (construção de um sistema via a trapaça intelectual consciente) ou prática (uso da mentira para negar a primeira realidade ou alegar a incompreensão da segunda realidade – por vezes inconscientemente).
Na psicopatologia estoica, allotriôsis é um estado de retirada do próprio Eu, o qual se constitui da tensão entre o homem e o plano divino da existência. Uma vez que o plano divino da existência é o próprio logos, ou fonte da ordem neste mundo, a retirada do Eu, constituído por esta força ordenadora, é um recuo da razão na existência. O resultado, neste caso, é o uso da razão, que o homem evidentemente continua a possuir, para justificar sua existência no estado de alienação criando estruturas ideológicas – rejeição da razão divina na revolta ególatra levando a criação de sistemas ideológicos.
“... resta-nos a eterna guerra de crenças.” – comentário de Ulrich diante da ausência da Verdade (Parte III – capítulo 38)
No estado de alienação o homem não perde sua consciência e gerará imagens substitutivas da realidade a fim de obter ordem e direção para suas existência e ações no mundo. As mais importantes fontes no desenho da segunda realidade são a luxúria de riqueza, poder ou sexo e a supervia vitae (soberba da vida) – monstro mitológico Quimera – vaidade, sexo e poder (derrota anímica). Ulrich busca na ciência a forma de viver (está alienado) e advoga pelo domínio da paixão sobre os imperativos morais demandados pela sociedade ou religião – utopia de uma condição alternativa (segunda realidade) a vigorar após a “morte de Deus” proclamada por Nietzsche. Em sua irrealidade Ulrich ambiciona resolver todos os mistérios da existência.
Quando a segunda realidade torna-se socialmente dominante seguem-se graves distúrbios na ordem social.
Aristóteles definiu noûs como o cerne da personalidade. Se o homem não ama esse cerne, e então seu próprio Eu, ele perdeu contato com a realidade. Ulrich não ama a si mesmo porque ele não tem um Eu, e então o mundo se torna uma realidade aparente. Ulrich vive uma relação sombria consigo mesmo (Ulrich e Agathe como duplos – o homem em busca de si mesmo, reencontro com o eu – descambando na philautia ou excessivo amor próprio). Ele não reconhece suas qualidades como suas porque elas funcionam como qualidades de um papel particular, definidas em termos de sua função social, e não como qualidades de um homem. O “homem sem qualidade” apenas exerce papeis diferentes. As qualidades seriam os valores tradicionais então destroçados com o afastamento do logos. “O homem sem qualidades” está em busca de um novo padrão de existência – busca do significado de viver sem a influência dos tradicionais valores espirituais e éticos.
No romance o “homem sem qualidades” é descrito como aquele que perdeu o sentido de realidade e encontra justificação para tudo, desde que seja uma ideia incomum – dá mais importância àquilo que poderia ser do que àquilo que efetivamente é ou não é – entende como falso aquilo que todos admiram e como lícito o que é proibido – idealistas, visionários, sonhadores, fracos, julgam tudo saber melhor e em tudo põe defeito (e.g. os crimes não são responsabilidade do criminoso, mas sim das falhas na organização social). A personagem Walter descreve o “homem sem qualidades” como aquele que teve sua personalidade dissolvida junto com todos os valores até então existentes.
Para Otto Maria Carpeuax o homem sem qualidades seria o homem indefinido. O Homem Sem Qualidades apresenta várias tendências espirituais e políticas presentes na Áustria imperial antes de 1914 – romance-ensaio sobre a decadência dos valores na Áustria, símbolo da decadência dos valores na Europa e no mundo, vista pelos olhos do homem indefinido, ou seja, do intelectual sem qualidades definidas. Ulrich faz a (auto) análise, acusação e zombaria do homem ocidental na idade da estupidez que alvora em 1913.
Notas
Robert Musil (1880-1942) nasceu em Klagenfurt, na Áustria, e morreu pobre – quase esquecido e dependendo da ajuda de amigos – em Genebra, na Suíça, em plena II Guerra Mundial.
O primeiro volume de O Homem Sem Qualidades foi publicado em 1930. Seguiram um segundo volume em 1933 e o terceiro volume contendo fragmentos em 1943 (póstumo). Outras obras destacadas do autor: o romance O Jovem Törless (1906) e o ensaio Sobre a Estupidez (1937).
Há muitas similaridades entre o histórico de Musil e da personagem Ulrich, por isso considerada como o alter ego do autor. Muitas outras personagens são também inspiradas em conhecidos de Musil ou personalidades da época.
O Homem Sem Qualidades foi idealizado em quatro partes: (1) Uma espécie de introdução (capítulos 1 ao19 – apresenta Ulrich, termina com a leitura da carta recebida do seu pai), (2) A história de repete (capítulos 20 ao 123 – Ulrich encontra diversas figuras da vida vienense, introduz-se a Ação Paralela, termina com o anúncio da morte do pai de Ulrich – título remete a um mundo de sistemas uniformes, de repetição, impessoal e estatisticamente mediano), (3) A caminho do Reino do Milênio – Os Criminosos (incompleto – capítulo 1 ao 38 publicado (encerra com mais uma infrutífera reunião da Ação Paralela), 39 ao 58 em provas mas não publicados e 59 ao 62 rascunhos de continuação – Milênio como Céu na Terra com os criminosos Ulrich e Agathe, crentes sem Deus, vivendo a “outra condição” ou segunda realidade, e (4) Um espécie de final (nunca escrito).
A narrativa de O Homem Sem Qualidades inicia-se me Agosto de 1913 em Viena, pouco antes da eclosão da I GG (28/07/1914 – 11/11/1918).
Celebrações projetadas na narrativa: trinta anos do reinado do Kaiser Guilherme II (15/06/1918) e setenta anos do imperador austríaco Franz Joseph I (02/12/1918) – Ação Paralela.
Cacânia = Kakania ou kaiserlich-königlich (imperial-real) = Áustria e Hungria. O Império Austro-Húngaro (1867-1918) acomodava múltiplas nacionalidades compreendendo a Áustria, a Hungria, a Tcheco-Eslováquia e partes da Polônia, Romênia, Iugoslávia e Itália.
Nôus = inteligência divina, ordenadora do cosmos, para os pré-socrástico – alma racional para Platão – faculdade capaz de apreender os primeiros princípios (que não podem ser provados pela razão) para Aristóteles.}
Heimito von Doderer em Os Demônios também trata da segunda realidade (“recusa de perceber”).
Ao longo da narrativa há inúmeras referências às ideias de Goethe, Hegel, Nietzsche e Napoleão. Remetendo, assim como no livro Os Sonâmbulos de Hermann Broch, aos artífices do pensamento alemão-austríaco: Kant (1724-1804), Goethe (1749-1832), Hegel (1770-1831), Nietzsche (1844-1900) e Freud (1856-1939).
Musil utiliza vários nomes irônicos revelando traços das personagens: Drangsal (do verbo importunar), Feuermaul (goela de fogo), Bonadea (deusa), Leona (leoa), Meingast (meu hóspede), Stumm von Bordwehr (o mundo da defesa de bordo), professor Schwung (professor furacão), Friedenthal (amigo da paz), Lindner (o que traz alívio).
Moonbrugger representa a inconsciência irracional e selvagem pulsando sob os valores decadentes da Cacânia (Europa). Clarissa – “O assassino é musical!” – pressente a erupção da violência que iria devastar os escombros de sua existência frustrada e desgovernada.
A relação incestuosa entre Ulrich e Agathe teria por objetivo destruir a moral burguesa, transcendendo o ambiente caótico observado no primeiro volume. Nos seus últimos escritos Musil indica que Ulrich começa a considerar ele e sua irmã como “niilistas e ativistas”, e não realistas.
Ulrich, para Robert Musil, é o ápice da decadência na perda da espiritualidade ou a alternativa àquela decadência?
Mapa da Europa em 1914: