“Tudo o que era de Deus será de agora em diante dado a César.”
— Albert Camus
Na primeira metade do século XX a Europa passou da euforia proporcionada pelos avanços tecnológicos das últimas décadas a uma profunda depressão resultante das duas grandes guerras. Para muitos europeus nada mais tinha valor, levando a uma grande dessacralização da existência humana – nada mais fazia sentido, nada governa o devir, a vida é absurda (absurdidade não implícita ao mundo, mas derivada da perda da noção de sentido – após a rebelião contra Deus, declaração de independência infanto-juvenil, tudo pareceu absurdo).
Neste ambiente de desesperança cresce o pensamento existencialista, destacando nomes como Jean-Paul Sartre e Albert Camus, ambos entendendo a vida como absurda.
Camus expõe sua visão sobre a absurdidade da vida no manifesto literário O Mito de Sísifo (1942), vislumbrando quatro alternativas para o homem diante da existência destituída de sentido:
Suicidar-se, pois simplesmente não há razão para permanecer vivo;
viver absurdamente, dando o exemplo de Dom Juan – viver para metas sem sentido, meramente quantitativas;
jogar o problema para o plano metafísico, alternativa que o ateu Camus ridiculariza na figura do padre Paneloux no romance A Peste (1947);
aceitar a absurdidade do mundo mantendo-se digno – seja na existência estéril da personagem Meursault na novela O Estrangeiro (1942) ou produzindo uma ação concreta como Bernard Rieux no romance A Peste, ambos revoltados metafísicos.
Camus advoga por esta última alternativa e tem uma postura contemplativa diante do seu entendimento da absurdidade da existência humana. E nisto difere-se de Sartre, e muitos outros intelectuais de sua época, que também rechaçavam o plano metafísico mas propunham substituir Deus por uma ideologia (habitualmente de origem marxista, como no caso de Sartre).
Em O Homem Revoltado, Camus explícita esta diferença com os demais existencialistas afirmando não haver diferença entre a explicação religiosa e a ideológica, não vendo solução em substituir Deus (transcendência divina) por um partido político (transcendência humana) – entende ser a troca de uma ilusão por outra ilusão.
O homem revoltado é todo indivíduo que se rebela contra o mundo que considera injusto – culpando Deus por sua condição humana trágica. Camus justifica esta revolta, que chama de metafísica, e critica implacavelmente a “revolta histórica” enumerando os crimes e injustiças cometidos em nome da Cidade dos Homens a ser alcançada junto com o fim da história. Está marcada a diferença entre a reação camusiana (metafísica) e sartriana (histórica) diante da absurdidade. Sartre e seus partidários viam no comunismo a solução para o absurdo, ao passo que Camus entendeu que o comunismo (e outras ideologias coletivistas, totalitárias por natureza) era apenas uma sanguinária e má substituição ao Deus no qual ele também não acreditava.
Camus acusa as revoluções de seu tempo como uma traição ao verdadeiro espírito da revolta. O revoltado histórico seria mais um ressentido que um revoltado. O revoltado (metafísico) defende o que ele tem, está disposto a sofrer e é solidário aos demais. Já o ressentido (revoltado histórico) inveja o que não tem, quer que os outros sofram e não é solidário com todos. O ressentido não julga o absurdo intrínseco a vida, mas como algo temporário que ele solucionaria empregando uma nova modalidade de crime: o crime ideológico. Até então havia apenas o crime de paixão (desejo ou cobiça), mas o criminoso ideológico justifica a matança daqueles que pensam diferente dele – “matam em nome da humanidade”, hipocrisia assassina enfeitada com despojos de inocência. O revoltado metafísico considera o suicídio justificável diante do absurdo do mundo, enquanto o revoltado histórico (ressentido) entende que os outros são absurdos, tornando o mundo absurdo, e por isso devem morrer (assassinato justificável).
Os genocídios ideológicos tiveram início com a Revolução Francesa (assassinato simbólico do Rei) e segue até nossos dias, tendo o comunismo, apenas na China e Rússia, assassinado ao longo do século XX mais de 150 milhões de seus conterrâneos em tempo de paz, apenas por não pactuarem com o mundo idealista e utópico professado pelos ressentidos que alcançaram o poder.
Para Camus o revoltado deveria ter consciência do absurdo, combater as injustiças (algo como um cristianismo sem Cristo) e buscar a felicidade na consciência da inutilidade pura. Ele soube apontar o erro dos ressentidos e entender as mazelas das ideologias messiânicas, mas também erra ao virar as costas ao transcendente divino e acreditar que do vazio resultante nasceria um “novo homem”.
Notas
Albert Camus (1913-1960) nasceu na Argélia mas era filho de franceses (de vida modesta). Logo era um pied-noir, francês nascido nas colônias africanas.
Estudou nas melhores escolas de Argel, pois contava com apoio dos professores que logo identificaram seu potencial.
Estreia literariamente em Paris, em 1942, com o ensaio filosófico O Mito de Sísifo e a novela O Estrangeiro.
Escritor cultuado (prêmio Nobel em 1957), Camus deve ser lido com muito cuidado, pois muito ajudou na confusão do século XX. A Peste (1947) é seu romance mais importante.
Não é um autor original, aborda os grandes temas por sua relevância. Usa os livros como veículo de ideias, tendência daquela época.
Esquerdista, logo rompe com stalinistas e trotskistas e, sem nenhuma filiação institucional, segue sua independência ideológica.
O Mito de Sísifo é um livro nietzschiano profundo, total e completo.
Sartre narra sua visão sobre as absurdidades do mundo no romance A Náusea (1938) e no ensaio O Ser e o Nada (1943). Ele era oito anos mais velho que Camus.
Sartre critica violentamente O Homem Revoltado na sua revista Les Temps Modernes, anunciando a cessação de qualquer forma de comunicação com Camus. Os intelectuais ressentidos acusavam-no de imobilista, petrificado pela própria dúvida de não saber o que fazer.