“Em um estado onde todos são iguais, fica mais difícil preservar a independência dos cidadãos diante da agressão do Poder.”
– Alexis de Tocqueville, necessidade da presença independente e atuantes dos brâmanes e vaixás na preservação do equilíbrio social – daí o antagonismo à religião e aos empresários nos governos desejosos de poder absoluto.
Personagens Principais
D-530 – narrador, engenheiro responsável pela nave espacial Integral
I-330 – jovem revolucionária, amante de D-530
O-90 – jovem apaixonada por D-530
Personagens Secundárias
S-4711 – agende Guardião (polícia política), revolucionário Benfeitor – chefe de estado, sempre reeleito por “unanimidade” Iu – supervisora do edifício de moradia de D-530 R-13 – poeta estatal, amigo de D-530 Doutor – médico, aliado de I-330
Interpretação
Nós não é a primeira distopia escrita, mas destaca-se como protótipo enfocado no totalitarismo político e na reengenharia social, dois elementos que seriam, não apenas preponderantes nas duas mais insignes distopias que seriam escritas a seguir, i.e. Admirável Mundo Novo (1931) de Aldous Huxley e 1984 (1948) de George Orwell, mas também dolorosa e crescentemente presentes no mundo real.
Tais distopias literária não nascem como contraponto dos escritos utopistas, mas como reação e alerta ao messianismo produzido pelo pensamento utópico.
As utopias são a origem do processo revolucionário, da rebelião metafísica contra a cosmologia reinante. O homem se enfraquece ao idealizar em demasia sua utopia, outorgando-lhe todo o bem e deixando o mal para a realidade – dissociando o bem da verdade. O messianismo é a síntese do conflito entre a utopia e a realidade – é fruto da utopia. Há uma degeneração na passagem do utopismo ao messianismo, e escritores refletem este problema em suas distopias literárias.
O utopista projeta um mundo que não existe na prática e que parece ser melhor do que o mundo verdadeiro – é um mundo inventado. A República de Platão, Utopia de Thomas Morus, Nova Atlântida de Francis Bacon e Cidade do Sol de Tommaso de Campanella são exemplos de utopia colocadas como referência para debate, seus autores não acreditavam em sua aplicabilidade, nem queriam impor que o mundo fosse daquele jeito. O termo utopia, criado por Morus, significa “não lugar”, i.e. inexistente. O utopista sabe que é criatura e não o Criador, entende a hierarquia natural das coisas, tem comportamento estático e contemplativo.
Já o messiânico tenta implementar um novo mundo (mesmo que ainda pouco definido). E acreditando estar numa missão benigna – melhorar o mundo – outorga-se o direito de fazer o que quiser, invariavelmente provocando dor e morte. A lei não se aplica a ele, pois é a lei do mundo mau atual. O messiânico tenta isentar-se moralmente para escapar do seu tribunal interno. Prometeico, não tem a humildade de entender que o mundo não é perfeito, não tem a humildade de esperar para entender, quer resolver o mundo agora. Acredita no fim temporal da história, e tem comportamento dinâmico, com foco no movimento e transformação.
Zamiátin reagiu a literatura que fomentou o pensamento revolucionário bolchevique (e.g. O que fazer? de Tchernichevski, livro de cabeceira de Lenin) e sua messiânica implementação a partir de 1917. Seu mérito foi ter enxergado e registrado literariamente em Nós toda a monstruosidade que germinava na Rússia logo após a revolução, desmontando a velhaca tese de que o desastre que se seguiria seria fruto apenas do stalinismo (como se Josef Stalin não encarna-se toda a essência do comunismo) – “a Rússia espalhando seus erros pelo mundo” como alertou Nossa Senhora em Fátima.
Nós apresenta muitas situações que se repetirão, em maior ou menor grau, em Admirável Mundo Novo e 1984, destacando-se aquelas que vemos também embrionariamente presentes no mundo contemporâneo:
(a) Total aniquilação da família. Família é a base da vida social, dela a humanidade evoluiu para as aldeias, cidades e nações. A destruição da família desmorona toda a sociedade, atomiza o indivíduo, facilitando o domínio absoluto do Estado. O povo do Estado Único de Nós vive como os escravos romanos, impossibilitados de formar família. (b) Eliminação da religião, onde Deus é substituído pelo Estado, e o líder é idolatrado (“Estado Único como deus” ou “nós nos transformamos em deuses” dizia D-530). Total perda de transcendência e destruição dos compassos morais, substituídos pela vontade do Estado. (c) Destruição da individualidade, absorvida pelo coletivo. O indivíduo como peça de uma engrenagem a serviço do Estado – enaltecimento do cidadão cujo mérito está no quão bem ele serve ao coletivo. “Consciência individual é apenas uma doença” diz D-530. (d) Assolar a liberdade em todos os sentidos, do tolhimento do direto de ir e vir ao fim da liberdade de expressão e, até do pensamento (“O único meio de livrar uma pessoa do crime é livrá-la da liberdade.” - afirma D-530 falando da “ideal falta de liberdade”). Eliminação da privacidade e, com ela, os momentos de introspecção necessários para avançar em direção à sabedoria. Estado policialesco implacável. (f) Substituição da verdadeira educação (familiar) e do bom ensino pela doutrinação e lavagem cerebral – abandono do ensinamento dos melhores modelos. Incluído eliminação da tradição cultural (“Maior monumento literário legado pelos antigos: horário das estradas de ferro.”diz D-530). O ser humano é herdeiro dos seus antepassados, o Estado totalitários lhe rouba este bem. (g) Dessacralização e banalização do sexo (Lex Sexualis em Nós: “todo número tem direito a qualquer outro número”). Estimulo à concupiscência (constante estado de excitação sexual) como inibidor da razão e afastamento do amor.
(h) Absoluto descaso com a vida humana. A transformação do indivíduo em uma simples peça da engrenagem social o torna descartável e facilmente substituível. Sem família ou unicidade, ninguém sentirá ou lamentará sua ausência – o Estado pode se desfazer das pessoas como bem entender.
(i) Cientificismo no lugar da transcendência – estupidificação do homem, restrição do potencial humano. Viver a tensão e aceitar os mistérios da existência é abrir possibilidades múltiplas, é colocar a nossa cabeça no mundo. Ao passo que a certeza, por meio da ciência e racionalidade, tenta enfiar um mundo falacioso e limitado na nossa cabeça.
Nas três distopias acima mencionadas, temos ao final a vitória do Estado totalitário e aniquilamento das liberdades e da individualidade, quebrando a ordem ontológica. No mundo atual observa-se o homem, no agregado, aceitando o jugo do Estado como uma lagosta morrendo em água fervente. O homem contemporâneo desconectou-se da realidade, vitimizando-se cada vez mais, perdeu o sentido trágico da vida e a aceitação das vicissitudes mundanas, e prefere trocá-los pela conformidade e a monotonia apática, facilmente abrindo mão de sua liberdade por uma ilusão de segurança oferecido por uma classe governante (xátrias) que há muito perdeu o sentido de honra, virtude, nobreza e glória.
Notas
Ievguêni Zamiátin (1884-1937) nasceu em Lebedian, Rússia.
Escritor, ensaísta e engenheiro. Bolchevista na juventude, rapidamente decepciona-se com os rumos da revolução russa de 1917.
É um dos primeiros dissidentes soviéticos. Perseguido pelo Partido Comunista e pela União dos Escritores Soviéticos, consegue permissão para deixar a URSS em 1931 para nunca mais voltar.
Outra obra destacada é Histórias do Distrito (1913).
Nós foi o primeiro romance censurado na URSS (1921), sendo publicado inicialmente em inglês em 1924 e em tcheco em 1927. É publicado em russo apenas em 1952, e permitido na URSS em 1988.
A narrativa desenvolve-se mil anos no futuro, após uma guerra de duzentos anos ter dizimado 99,8% da população. As pessoas não tem nomes, mas números, e todos estão sob o Estado Único comandado pelo Benfeitor.
Há excelentes exemplos literários de utopistas e messiânicos revolucionários: (a) Em Os Demônios Stepan Verkhovensky é utopista e seu filho, Pyotr, é messiânico. É a melhor representação literária da passagem de um para o outro, e suas consequências. (b) Com Raskolnicoff de Crime e Castigo Dostoiévski apresenta o mecanismo da mentalidade revolucionária. (c) Rieux de A Peste quer fazer os valores cristãos sem Deus, mas os transforma diabolicamente. No cristianismo basta você ser bom (aos olhos de Deus), você não precisa resolver o mundo. (d) Tchitchikov de Almas Mortas é um ressentido social, o humilhado-ofendido que produzirá as revoluções. Apoia aquele que parece que não humilha e não ofende. Os pequenos têm o sonho de grandeza do poder e provocam as grandes mudanças sociais. As revoluções não são feitas por líderes que têm alguma coisa a perder, mas por um grupo que de alguma maneira está desprestigiado e que tem muito a ganhar com a revolução. Vê na tomada do poder uma oportunidade para solução para a sua baixa autoestima.
As pan-óticas edificação de vidro em Nós remetem ao palácio de cristal em O que fazer?.
O objetivo de levar sua ideologia e domínio para outros planetas através da Integral assemelha-se ao período colonialista e, posteriormente, às ambições imperialistas comunista e islâmica.
A palavra distopia foi utilizada pela primeira vez em público em 1868 por John Stuart Mill diante do parlamento: utopia seria algo demasiadamente bom para ser possível e distopia ruim demais para ser possível.