Interpretação “O mito é o nada que é tudo.” – Fernando Pessoa, abertura do poema Ulisses (segunda subdivisão de Brasões) Não há como evitar a comparação entre Mensagem e Os Lusíadas, pois os dois poetas cantam, em diferentes perspectivas, a grandeza de Portugal e o sentimento português.
Em ambos poemas D. Sebastião é um enviado de Deus e os diferentes heróis narrados (mais humanos em Camões e mistificados em Pessoa) concretizam a vontade divina,
Celebram a ação grandiosa e heroica dos portugueses, mas também apresentam um desencanto face o presente e apelam ao futuro. Camões evoca D. Sebastião a prosseguir os feitos do povo português, enquanto Pessoa vê a necessidade de uma nova força anímica para resgatar a grandeza perdida de Portugal através da literatura e da cultura (conquista cultural e espiritual).
Estruturado a partir do mito de D. Sebastião em três partes, e composta de vários poemas, em diferentes vozes, que se cruzam dramática e liricamente, Mensagem configura-se como um épico moderno. A estrutura tripartida do poema corresponde a três momentos do império português: Nascimento, Realização e Morte. Mas esta morte não é definitiva, pois pressupõe um renascimento que será o novo império, futuro e espiritual. As divisões e subdivisões internas seguem rigorosa lógica baseada em uma estrutura numérica de forte simbolismo e difícil compreensão:
(1) Brasão: evoca reis e príncipes que foram os heróis fundadores de Portugal, a partir de um mítico Ulisses. A epígrafe (“Bellum sine bello.” – “Guerra sem combate.”) reflete o desejo do poeta em recuperar a glória portuguesa passada através do espírito e da cultura.
Em Ultimatum e Páginas de Sociologia Política, Fernando Pessoa afirma que “só duas nações – a Grécia passada e Portugal futuro – receberam dos deuses a concessão de serem não só elas mas também todas as outras. (…) Tristes de nós se faltarmos à missão que Aquele que nos pôs ao Ocidente da Europa, e tais nos fez quais somos, nos impôs quando nos deu este nosso aceso e transcendido espírito aventureiro. Depois da conquista dos mares deve vir a conquista das almas.”
O Brasão é formado por 5 (cinco) subdivisões, como as partes do símbolo heráldico: Campos, Castelos, Quinas, Coroa e Grifo. O número cinco representa harmonia, ordem e equilíbrio.
Dois poemas compõe a primeira subdivisão (Os Campos), com a dualidade possivelmente simbolizando a divisão entre o Criador e a criatura (Portugal).
Os Castelos, segunda subdivisão, composto de 7 (sete – número da perfeição dinâmica) poemas como sete foram os castelos conquistados aos mouros por D. Afonso III, como sete foram os dias da criação e sete as personagens cantadas, todas criadoras da nacionalidade: Ulisses fundou Lisboa (mito), Viriato, uma nação, Conde D. Henrique um condado, D. Diniz uma cultura, e os outros três, D, João, D. Tareja e D. Filipa, fundadores de dinastias.
Na terceira subdivisão (Quinas), Pessoa escolheu cinco mártires: D, Duarte, D. Pedro, D. Fernando. D. João e D. Sebastião (as cinco chagas de Cristo para nossa salvação).
A quarta subdivisão (A Coroa) contém apenas 1 (um) poema, número unificador – comunhão do humano com o transcendente (dimensão sobre-humana de Nuno Álvares Pereira abordado neste poema)
Finalmente, a quinta e última subdivisão (O Timbre) compreende três poemas. O timbre do brasão é o grifo (misto de águia e leão – poder no céu e na terra, construção de uma obra divina realizada por homens). As três personalidades abordadas, Infante D. Henrique (O Navegador, levou Portugal à exploração do Atlântico), D. João II (notabilizou-se pelos descobrimentos), e D. Afonso de Albuquerque (maior vice-rei nas terras da Índia) sinalizam o império português abordado em Mar Português.
(2) Mar Português: celebra os heróis que, impulsionados pelos reis, foram os verdadeiros responsáveis pela expansão portuguesa, e.g. Vasco da Gama. É a posse do mar (“Possessio maris.”), a vitória do querer e da ousadia impulsionada pela fé sobre a ignorância – triunfo do espírito sobre a matéria (“Navegar é preciso; viver não é preciso.”).
Esta parte é composta de 12 (doze) poemas, o número da realização e ciclo concluído. Refere-se ao período áureo português, ao qual se seguem as trevas – O Encoberto.
(3) O Encoberto: reafirma a possibilidade de recolocar Portugal no mapa do mundo da cultura. Sonho místico do poeta. Algures Pessoa escreveu que “Há só uma espécie de propaganda com que se pode levantar o moral de uma nação – a construção ou renovação e a difusão consequente e multímoda de um grande mito nacional.” E acreditava necessário renovar o mito de D. Sebastião para a criação do Quinto Império – o renascimento humano através da reconquista da união dos homens com Deus.
O conjunto de poemas de Os Avisos profetizam o Quinto Império através de três poemas (três “profetas”): Bandarra (o primeiro a fazer profecias messiânicas sobre D. Sebastião), Padre Antônio Vieira e o autor.
A epígrafe desta terceira parte (“Pax in Excelsis.” – “Paz nas alturas.”), bem como a expressão que encerra o poema (“Vale, Frates.” – “Felicidades, irmãos.”) expressam o anseio de que o Quinto Império seja de paz e fraternidade, indo ao encontro da abertura com “bellum sine bello”.
Em Os Lusíadas, Camões apresenta o homem consciente se sua condição trágica e que escolhe o caminho dos Céus em detrimento da Terra, realizando obras impensáveis. Mas o povo daqueles homens já não existe, foi substituído pelo “senhorzinho satisfeito” (ver A Rebelião das Massas de Ortega y Gasset), acomodado e indiferente – “Triste é quem é feliz.”
E Pessoa conclama seus patrícios as aspirações de heróis (“Ser descontente é ser homem.”), e a ter coragem para enfrentar as grandes provocações da vida e alcançar os valores espirituais (Que as forças cegas se domem/Pela visão que a alma tem!”) – pois nada vale a pena quando a alma é pequena.
Notas
Fernando Pessoa (1888-1935) nasceu em Lisboa, Portugal. Morreu praticamente desconhecido, mas foi gradativamente alçado a condição de um dos maiores poetas na língua portuguesa a partir dos anos 1940s.
Além de grande poeta, Pessoa destaca-se pelo uso de heterônimos (pseudônimos que criava com uma bibliografia completa), entre os quais sobressaíram Alberto Caeiro, Ricardo Reis, e Álvaro de Campos.
Somente após sua morte, sua obra poética, espalhada por revistas literárias efêmeras, foi reunida e editada. Apenas Mensagem foi publicada, em língua portuguesa, pelo autor.
Pessoa escreve Mensagem entre 1913 e 1932, e finalmente a publica em livro em 1934 – projeto de uma vida.
Em apontamento sem data, Pessoa informa que o título original de Mensagem era Portugal, e que mudou convencido por um amigo de que este nome estava prostituído. Ao mudar o nome, optou por algo mais profundo; e aproveitou para atacar a tendência de simplificar as coisas para o populacho, pois assim nunca serão elevados do vale da ignorância.
Nota-se que as palavras Portugal e Mensagem têm 8 letras, e oito, além de ser um número de harmonia, é também ligado aos templários, mais precisamente à cruz Templária que tem 8 pontas. É a mesma cruz também utilizada nas caravelas. Pessoa parece querer nos dizer que Mensagem é Portugal e que Portugal é a realização da missão da Ordem de Cristo e, por descendência, da Ordem do Templo.
O título Mensagem é ainda dividido por Pessoa em 3 partes: MENS/AG(ITAT MOL)EM. "Mens agitat molem" é uma citação de Virgílio (Eneida) que significa que a mente move a matéria. O objetivo da Mensagem seria mover o povo português pela poesia.
Pessoa, ainda jogando com as letras, sublinha ENS e GEMMA, ou seja, ente em gema (ovo). É Portugal em essência, em gema – o Quinto Império em potência. Os alquimistas consideravam o ovo germe de vida espiritual, do qual deverá eclodir o ouro da sabedoria – onde concentram-se todas as possibilidades de criar, recriar, renovar e ressurgir.
Finalmente Pessoa corta a palavra Mensagem em MEA GENS ou GENS MEA, i.e. minha gente ou gente minha, conclamando a identificação portuguesa com aqueles heróis.
Pessoa considera-se um nacionalista místico, um sebastianista racional. Quer celebrar a alma nacional portuguesa. Otto Maria Carpeuax vê o poeta de Mensagem como um “céptico irônico (que) celebra a mística fé sebastianista do povo português.”
Ambicioso projeto de superar Camões esteticamente – Pessoa não teria escondido seu desejo de suplantar Camões.
Camões e Pessoa expressam seu patriotismo alçando Portugal a protagonista do continente, aquele representado o país como “cabeça da Europa” e este como “o rosto com que” a Europa fita o Ocidente.
Camões (Eneida) e Pessoa (Odisseia) beberam ambos da fonte épica antiga.
A epígrafe de Mensagem (“Benedictus Dominus Deus noster qui dedit nobis signum.” – “Bendito sejas Deus nosso Senhor, que nos deu sinal.”) é uma expressão latina comum nas obras rosa-crucianas e funciona como um aviso ao teor simbólico contido nos versos, sendo o logos (Jesus Cristo) o símbolo magno intermediário entre a vontade divina e os homens.
Quinto Império: os outros quatro são cronologicamente Grécia, Roma, Portugal e Europa.
Tanto Adamastor (Camões) como o Monstrengo (Pessoa) representam os perigos do mar e o valor do povo português em enfrentá-los.
Segue O Monstrengo onde podemos observar o uso de elementos sonoros para dar dramaticidade ao poema, consonante ao tema abordado: (a) na primeira estrofe vemos (sublinhado) a aplicação de vogais fechadas para reforçar a escuridão e situação temerária na qual se encontra o navegante – as vogais fechadas se sobressaem ainda mais na segunda estrofe, a fala do monstrengo; (b) na segunda estrofe vemos (sublinhado) o reforço onomatopaico no som (ch) semelhante as ondas batendo no caso do navio.
O monstrengo que está no fim do mar Na noite de breu ergueu-se a voar; A roda da nau voou três vezes, Voou três vezes a chiar, E disse: «Quem é que ousou entrar Nas minhas cavernas que não desvendo, Meus tetos negros do fim do mundo?» E o homem do leme disse, tremendo: «El-Rei D. João Segundo!»
«De quem são as velas onde me roço? De quem as quilhas que vejo e ouço?» Disse o monstrengo, e rodou três vezes, Três vezes rodou imundo e grosso. «Quem vem poder o que só eu posso, Que moro onde nunca ninguém me visse E escorro os medos do mar sem fundo?» E o homem do leme tremeu, e disse: «El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do leme as mãos ergueu, Três vezes ao leme as reprendeu, E disse no fim de tremer três vezes: «Aqui ao leme sou mais do que eu: Sou um povo que quer o mar que é teu; E mais que o monstrengo, que me a alma teme E roda nas trevas do fim do mundo, Manda a vontade, que me ata ao leme, De El-Rei D. João Segundo!»