Personagens Principais Homem do subsolo – narrador, ex-funcionário público, 40 e poucos anos
Personagens Secundárias Apólon – empregado do homem do subsolo Liza – prostituta, equivalente a Sonja de Crime e Castigo Oficial – desconhecido com o qual o narrador implica Colegas de repartição – aos quais não respeita e vice-versa
Interpretação “Eu gostaria de fazer alguma coisa, mas tudo é inútil.” – Homem do subsolo (lembra o frio congelante – paralisante – do inferno de Dante)
Ironicamente, com várias conotações satíricas, Dostoiévski faz uma devastadora crítica às nefastas ideologias vindas do ocidente que infestavam a Rússia, particularmente o utopismo utilitário nas ideias socializantes de Nikolai Tchernichevski (1828-1889) e o romantismo progressista que levava o homem a sentir-se superior aos demais por sonhar em salvar a humanidade, mas apenas no campo abstrato. Ideias fortemente presentes na Rússia do século XIX e que mais tarde promoveram a Revolução Bolchevique de 1917.
A primeira parte (O subsolo) dedica-se a questionar a ideologia de Tchernichevski expressa na obra O que fazer? (1862) que propunha o advento de um “novo homem”. Em meio à loucura ideológica socialista, o homem do subsolo ataca mais diretamente a ausência de livre-arbítrio como senso moral que confere ao homem o senso de dignidade humana, condicionado que estaria na busca dos próprios interesses que, através da razão e educação, são direcionados ao bem-estar da maioria de seus semelhantes.
Segundo o homem do subsolo “o homem sempre gostou de agir a seu bel-prazer e nunca segundo a razão ou o interesse. Ele pode desejar ir contra a própria vontade, e muitas assim deve fazer. Uma vontade própria, livre, ainda que absurda... o homem precisa unicamente de uma vontade independente, custe o que custar esta independência e leve aonde levar”. De fato, no momento em que se admite que o comportamento humano é mecânico, automaticamente se destrói o livre-arbítrio, logo não há mais culpa. Não há possibilidade de justiça num contexto de falta de responsabilidade. Se não há responsabilidade pelos atos, não há mais justiça possível.
Na segunda, e última parte (A propósito da neve molhada), há um recuo de duas décadas no tempo. O homem do subsolo, então com 24 anos, é o protótipo do romântico progressista (similar ao “politicamente correto” dos nossos dias). Cheio de ideais, mas pouco capaz de mover um dedo em prol das mesmas... comete atrocidades, mas vai as lágrimas quando fala do ideal justo e nobre. É o intelectual que se acredita superior aos demais dado sua cultura e conhecimento, e que não consegue obter a retribuição social da qual se considera merecedor, tornando-se rancoroso com o mundo que valoriza o “homem de ação”.
Ele não aceita ser menos reconhecido que aqueles que têm menor consciência da vida e compreensão do mundo, em clara demonstração de um ego inflado e doentio, dominado pela soberba (húbris), perdendo sua consciência moral. Este ressentimento pela vaidade ofendida (ressentimento social) caracteriza o “humilhado ofendido” (complexo de superioridade transformado em complexo de inferioridade), que em nome da humanidade clama buscar o poder para consertar o mundo, quando na verdade quer apenas vingar-se da sociedade e satisfazer seu ego.
Em Diário de Um Escritor Dostoiévski descreve o homem do subsolo como “nada mais do que uma angustiada e convulsiva manifestação da personalidade do homem, seu desejo de elevar a si próprio e sua personalidade humilhada, aparecendo de repente e expandindo-se em fúria, insanidade, perda da razão, paroxismo e convulsão”. Incapaz de uma ação positiva real, o romântico progressista age negativamente, por maldade inveja e rancor.
Dostoiévski nos conta que o homem do subsolo é um produto daquelas ideologias utopistas e progressistas. Para o autor o Inferno é um lugar onde é impossível amar, e o amor é incompatível com aquelas ideologias. Mesmo depois de afastar-se daquelas ideias e contestá-las, a personagem segue em estado deplorável, pois inexplicavelmente a censura czarista mutilou o capítulo no qual o homem do subsolo submete-se a Cristo como caminho da salvação. Caminho que o autor explicitará em Crime e Castigo.
Notas
Fiódor Dostoiévski (1821-1881) nasceu em Moscou, Rússia. Estreia literariamente em 1846 com Gente Pobre e O Duplo.
Principais obras: Crime e Castigo (1866), O Idiota (1868), Os Demônios (1871), Irmãos Karamazov (1878) e Memórias do Subsolo (1864). Outras boas obras: Humilhados e Ofendidos (1861) e Recordação da Casa dos Mortos (1855).
Memórias do Subsolo é o único livro do autor com conotações filosóficas.
Joseph Frank é o maior biógrafo de Dostoiévski (obra em cinco volumes – editados pela EDUSP no Brasil).
Segundo Otto Maria Carpeaux “existem poucos escritores cuja obra tenha sido tão tenazmente mal compreendida como a de Dostoiévski”.
Nietzsche entendia o “homem do subsolo” como o “super-homem” de sua criação, que ele acreditava poder existir.
Os duelos eram travados por pessoas do mesmo nível social. Não era aceitável desafiar pessoas de nível social maior ou menor.
Dostoiévski valoriza a ideia do “humilhado ofendido”, porque sabe que a mente revolucionária nasce dessa gente – ressentidos sociais em busca de poder.
O Formalismo Russo (década de 1920) não via ligação da obra com o mundo real, mas apenas com suas ligações internas. Perdeu força logo, sendo substituído por outras inutilidades como Desconstrucionismo ou aquelas que buscam nas obras apenas o que eles poderiam dizer das relações econômicas, geracionais ou entre os sexos ou raças da época narrada.
Tchernichevski foi fortemente influenciado pelo socialismo utópico descrito por Charles Fourier em Teoria dos Quatro Movimentos e dos Destinos Gerais – prega uma nova ordem societária construída pelo uso da razão.
O que fazer? tornou-se o livro de cabeceira de Lenin, determinando sua adesão ao movimento revolucionário. Mais tarde escreve seu próprio Que fazer? – bíblia do movimento bolchevista no início do século XX. Lenin odiava Dostoiévski.
O Palácio de Cristal de 92 mil m², associado ao sonho socialista de Tchernichevski, construído para abrigar a Grande Exposição londrina de 1851 foi destruído num incêndio em 1936.