“Para nós (homens), Deus é a medida de todas as coisas, não o homem […]. Assim, para ficar amado por Deus, terá necessariamente de tornar-se semelhante a ele, na medida de suas possibilidades.”– Estrangeiro (Livro IV – 761 c)
Personagens Estrangeiro – peregrino ateniense Clínias – peregrino cretense, membro da comissão fundadora de uma futura pólis Megilo – peregrino lacedemônio
O diálogo platônico Leis é dividido em doze livros, os primeiros três livros funcionam como introdução e exposição de motivos – sendo o símbolo de Deus o principal deles –, enquanto que os livros subsequentes dedicam-se à exposição das leis (nomoi) da pólis. Dentro destes nove últimos livros o tema é distribuído numa sequência algo sistemática da escolha de local e tamanho da população para a pólis, definição das instituições sociais, magistraturas, educação, festivais, cultos (religião), e leis civis e criminais. Os pontos altos desta exposição são os livros VII (educação) e X (religião), conectados com o motivo principal do livro I, ou seja, o símbolo de Deus que comanda a ordem e a história tendo o homem como marionete – a fundação e organização do estado platônico é teocrática.
A tradução do título Nomoi por Leis não deve ser entendido no sentido em que a palavra é usada na teoria jurídica moderna. O nomos de Platão está profundamente inserido no mito da natureza e tem uma amplitude de significado que inclui a ordem cósmica, os ritos dos festivais e as formas musicais – ignorar essa variedade de sentidos destrói a essência do pensamento de Platão. Leis é uma summa da vida grega cobrindo desde fatos históricos, dramas políticos, costumes bárbaros (estrangeiros) até o ethos das escalas musicais e a não desejabilidade de ter a pesca como esporte – uma visão grandiosa da vida humana em suas ramificações do nascimento até a morte.
Como A República, Leis versa sobre a organização político-social da pólis, sendo que a diferença entre os dois modelos deve ser buscado no plano existencial. A República pressupõe que o estrato governante será constituído de pessoas que incorporaram a Ordem em suas almas, sendo fonte permanente da ordem na pólis. Já Leis é escrito sobre a suposição de que os cidadãos livres serão pessoas que podem estar habituadas à vida de areté sob a orientação adequada, mas são incapazes de desenvolver a fonte da ordem existencialmente em si próprias e, portanto, precisam da persuasão constante dos proêmios (discursos de ensinamento apresentando as nomoi à sociedade – as leis são um instrumento de educação da população) e sansões da lei para mantê-las no estreito caminho correto – ambas oferecem instituições legais para a sociedade política, mas para dois tipos diferentes de homem (a diferença qualitativa entre as duas propostas é determinada pela qualidade dos homens como veículo da Ideia platônica).
O modelo da República pressupõe homens capazes de um vínculo existencial com a philia, mas estes verdadeiros philoi são tão raros que Platão se refere a eles como “deuses, ou filhos de deuses”. No mundo real e concreto, a matéria-prima humana é de natureza imperfeita, demandando as nomoi apresentada em Leis para a organização social. As nomoi da República devem ser expressas na nomoi de Leis com menor intensidade, adequando-se a substância humana.
Platão, talvez pela própria experiência em Siracusa, apreende a inviabilidade do rei-filósofo (República), e este passa ao papel de nomotheles (legislador) e autor dos proêmios (Leis) – o modelo ditatorial (República) de implementação das nomoi é substituído pela educação e suporte de instituições jurídicas compreendendo um tratado da vida da pólis em parceria com Deus (Leis).
A evolução de Platão da República para as Leis é comparável a evolução do Sermão da Montanha para a função da Igreja institucionalizada – os conselhos do Sermão não podem se tornar enunciados de conduto social no mundo concreto, mas funcionam como substância da doutrina cristã. A mediação entre a realidade pura de Jesus e o nível de conveniência humana, com um mínimo de perda de substância, é uma das funções da Igreja (a transição de Jesus a São Paulo). Nas Leis, tudo que resta da República é seu espírito – o sermão divino recua para o conselho heroico (a formação da pólis é a realidade da incorporação da Ideia).
A teocracia é o limite da concepção de ordem de Platão, pois ele não avança para a distinção entre ordem espiritual e ordem temporal. Para Platão o espírito deve manifestar-se na forma visível e finita de uma sociedade organizada, nas Leis sentimos a ideia de uma comunidade universal da humanidade no espírito logo além do horizonte, mas o último passo jamais é dado – e ele não poderia ser dado pelo homem sem a Revelação. A tendência é para o universalismo eclesiástico: o resultado é o sectarismo teocrático.
Leis é uma obra de arte, um poema religioso – o diálogo tem sua suprema importância como manifestação do espírito. Como artista religioso, Platão atingiu o nível universal que como teocrata não alcançou. Como legislador dos helenos, ele estreitou o espírito para adequá-lo à sua incorporação finita numa organização política dos eleitos (que fracassou na prática); como criador do poema, ele entrou, senão na Igreja, na comunidade universal do Espírito em que sua orientação conserva tanta autoridade hoje como teve no passado.
O diálogo começa com as três personagens estabelecendo que a origem das leis em suas pólis advêm de Deus através dos oráculos – o símbolo de Deus como o autor das instituições domina os três primeiros livros. O primeiro e segundo livros tratam da orientação do homem e de suas instituições comunitárias para Deus, e o terceiro tira lições da história das instituições políticas (história que também está sob o signo divino com os ciclos civilizatórios comandados por Deus como demonstram as catástrofes divinamente enviadas para destruir a civilização anterior). A longa jornada empreendida pelas personagens de Cnosso até o templo e gruta de Zeus simboliza o caminho árduo na direção de Deus.
A data da caminhada das personagens é o dia do solstício simbolizando o fim de uma era e o início de outra – ponto de virada no ritmo dos ciclo. Estariam na Idade de Ferro: o homem encontra-se corrompido, é o fim de um ciclo. Os elementos simbolizados pelos metais estão contraídos na alma humana individual. A estrutura da alma humana é simbolizada por Platão por meio do mito de Deus como o manipulador da marionete humana. A alma humana é ligada com dois conjuntos de cordas: um conjunto de cordas de ouro e outro de cordas de ferro (remetendo as idades civilizatórias). As cordas de ouro são sagradas, são as cordas do discernimento reflexivo individual e do nomos comunitário da pólis – seu puxão é suave e delicado, precisando do apoio do homem para ser eficaz. Enquanto o conjunto de cordas de ferro, portanto de material inferior, puxa de forma forte e violenta tendo o homem que resistir para não ser arrastado. O homem que entende este jogo tensional de autogoverno viverá em obediência do puxão das cordas de ouro; e a cidade que o tiver entendido e incorporado-o às leis viverá em acordo com elas internamente e em relação às demais pólis.
Esta inescapável tensão ontológica entre a virtude (cordas de ouro) e vícios (cordas de ferro) é esquecida pelo homem, esquecido de ser joguete de Deus e que esta é sua melhor qualidade – gnothi seauton. O homem esqueceu que apenas Deus é objeto de iniciativas mais sérias, e que deveria se concentra em vencer o jogo das cordas e louvar a Deus. Mas, corrompido, ele passa a dedicar-se as coisas meramente humanas. O homem que saiu da caverna e incorporou o logos na República saí de cena (“um deus ou filho de deuses”) e dá lugar aos homens reais e concretos que não possuem o logos encrustado em sua alma, mas sim o logismo, ou seja, o potencial de seguir a virtude junto com a incerteza de assim o fazer – os irreais “filhos dos deuses” tornaram-se os concretos “marionetes dos deuses”.
Cada homem é um elemento da pólis, cabendo-lhe individualmente o papel de dar apoio ao puxão das cordas de ouro e resistir ao das cordas inferiores. Este cenário é expandido para o conjunto social onde o nomoi (leis) tornam-se as cordas de ouro. Mas o homem só pode desempenhar a parte que lhe é atribuída por Deus – o jogo cósmico (a totalidade dos jogos (tensões) individuais) está nas mãos de Deus, e apenas Ele conhece seu pleno significado. A revolta metafísica tem sua causa no fato de que as partes (indivíduos) são ordenadas para o todo (cosmos) e que este todo não existe para a conveniência de cada uma de suas partes – a ordem do todo está na mente de Deus e não é inteligível em seus detalhes para o homem.
A história mostra a destruição causada quando as partes querem governar o todo (suprema húbris); e a lição é o discernimento de que uma ordem estável só será restaurada se o individualismo voluntarioso for superado e as partes se encaixarem novamente em seus devidos lugares com orientação a Deus – não há sociedade saudável composta por homens enfermos.
O propósito dos três primeiros livros foi aprender “como uma pólis é mais bem administrada e como o homem individual pode melhor conduzir sua vida pessoal”, sendo que os princípios expostos deveria ser submetidos a teste para auferir um resultado real. Neste ponto o cretense revela ser membro de um comitê encarregado de fundar uma nova colônia e propõe seguirem a conversa elaborando a ordenação da nova pólis conforme os princípios recém-desenvolvidos. Agora é o homem que tem que mostrar a sua habilidade na formulação das leis, não Deus. Essa construção da pólis pelo homem começa no livro IV e preenche o restante das Leis até o livro XII.
Circunstâncias e acasos são fatores tão prementes na política que quase seria possível dizer que as leis nunca são inteiramente feitas pelos homens, mas antes resultam dos determinantes de uma situação. Embora Deus governe nossas vidas através de tyche (Tique – deusa da fortuna, sorte) e kairos (Kairós – deus do tempo oportuno), ainda há o relevante papel destinado a nós em saber cooperar com kairos – o homem de valor saberá por quais condições orar de forma a exercer sua arte de maneira mais efetiva.
Quais, então, seriam as condições que Deus deveria proporcionar para que o trabalho do legislador possa ter sucesso? A primeira condição seria uma pólis governada por um tirano, de preferência jovem, com uma boa memória e disposição para aprender, corajoso e magnífico, e equipado com temperança; pois sob um governo autocrático reformas são realizadas com mais facilidade. A segunda condição seria a existência de um legislador de distinção que o acaso coloque em contato com aquele tirano. E a última, e mais difícil, condição seria o despertar do “Eros divino” por temperança e justiça nos ocupantes de posições de grande poder. Quando sabedoria e temperança forem combinadas ao maior poder num homem, nascerão as melhores constituições e leis.
Assumindo que Deus tenha proporcionado o kairos destas circunstâncias, os caminhantes começam por discutir qual seria o tipo de constituição. Uma democracia, uma oligarquia, uma aristocracia, ou uma monarquia? Platão rejeita qualquer destas possibilidades, pois todas são arranjos escravizados ao governo despótico de uma de suas partes. Citando o mito da Era de Cronos, Platão define que o governo deveria ser nomeado como nomoi a serviço do nous (inteligência – ver Ética a Nicômaco). Cronos sabia que a nenhum ser humano poderia ser confiado o controle sobre toda a humanidade, e estabeleceu espíritos divinos para cuidar do rebanho humano – uma pólis governada por um mortal não tem como escapar do mal. Portanto, o homem deve ordenar a vida privada e pública de acordo com a imortalidade (athanasia) que habita dentro de nós (nous é o toque divino que Deus insuflou em nossas almas).
As Eras de Crono e Zeus pertencem ao passado, o livro III apresentou como a Era de Zeus encerrou-se e mostrou a necessidade de um novo começo (dia do solstício). O novo ciclo imitaria a Era de Cronos ao reabsorver em suas instituições humanas a orientação divina, mas não mais a de Cronos, mas do novo deus do kosmo empsychos platônico: o Nous criativo e persuasivo.
Em seguida é desenvolvido o problema da forma governamental a partir da teoria dos ciclos da política. Consideram que estavam no fim de um ciclo que se iniciara depois o grande dilúvio divino – alguns poucos homens escaparam do desastre e recomeçaram a civilização humana. O ciclo cultural político segue seu curso pelas fases de crescimento, de clímax e queda, e de decomposição, até o declínio chegar ao ponto do novo início dos nomoi.
No período de crescimento observa-se a seguinte evolução da forma política: (1) Após o dilúvio, lar e família era a unidade social. Vive-se de acordo com os costumes e tradições dos pais (patriois nomois). É o governo dos anciões (dynasteia), governo patriarcal. (2) Com a multiplicação da raça avança-se do assentamento do clã para o agrupamento em aldeias, surgindo a necessidade de um legislador para mesclar e harmonizar as tradições dos diferentes clãs que compõem o novo agrupamento. Os mandatários dos governos patriarcais formarão uma nova aristocracia ou, caso um deles ganhe proeminência, formariam um reinado (basileia). (3) A junção de aldeias gera as cidades sob a forma constitucional (politeia) compreendendo todas as formas das sociedades políticas históricas e suas constituições. (4) Finalmente chegasse na federação nacional de cidades como teria sido a dos dórios após a guerra de Troia (tradição mítica). Esta organização é chamada por Platão de ethos, uma nação.
O desenvolvimento de uma federação nacional, que seria a aproximação do clímax político, insinua o sonho de Platão de um império helênico que rivalizasse os impérios asiáticos. Mas a potencialidade desta federação dórica não foi concretizada – atingimos o ponto de virada, início do declínio. A construção do sonho federativo teria falhado em razão da “maior insensatez” de um dos reis envolvidos – insensato é aquele que odeia o que seu discernimento aponta como bom e nobre (cordas de ouro) e ama o que seu entendimento reconhece como ignóbil e mau (discórdia entre os sentimentos e o logismo).
Do sucesso lacedemônio os peregrinos extraem a lição de que governos só serão estáveis se organizados em equilíbrio de certos fatores (na Lacedemônia a constituição incluía (a) o reinado duplo, (b) o Conselho de Anciões com voz igual à dos reis em questões relevantes, e (c) o Éforo democrático preenchido, na prática, por sorteio). O núcleo estabilizante do governo constituir-se-ia na combinação de liberdade (eleutheria), amizade (philia) e sabedoria (phronesis) – algo que só poderia ser obtido com uma mescla das constituições persa e ateniense (em sua forma pura ambas decompuseram-se).
A decomposição persa se dá principalmente por não respeitarem a hierarquia de bens na designação de posto governamentais: o lugar mais elevado na hierarquia pertence aos bens da alma (em particular a virtude da temperança), seguido pelos bens do corpo e, finalmente, pelos bens materiais. O erro persa foi desconsiderar os direitos e bem-estar do povo para colherem vantagens materiais imediatas para si. No caso ateniense, a origem da descomposição encontra-se na desconsideração pela antiga ordem musical da pólis. No período mais antigo, o julgamento dos desempenhos musicais era privilégio da classe governante educada – crianças e o povo só poderiam aplaudir (ou não) após a decisão das autoridades. Isto se perdeu gradativamente ao ponto de cada uma julgar por si mesmo, colocando o prazer acima da qualidade, desconsiderando a avaliação feita pelos melhores. Os passos seguintes foram a relutância em se submeter aos magistrados, resistência à autoridade paterna, desobediência às leis, e, ao final, desconsideração pelos juramentos e promessas, e o desprezo pelos deuses.
A exposição da estrutura do ciclo político é a preparação para o princípio que governará as instituições dos nomoi: o equilíbrio de elementos autocráticos e democráticos numa constituição (forma mista de governo) – sempre tendo em mente que a ordem institucional de uma comunidade não é o seu espírito, mas é o recipiente em que o espírito vive. As instituições são instrumentos para a realização do espírito, sendo que há instrumentos melhores e piores para tal. Platão considera que a foma mista de governo é o instrumento mais adequado para a incorporação do espírito.
O método de eleição seria um meio-termo entre monarquia e democracia – apenas alcançando o meio-termo (meson) o legislador poderia obter coesão da pólis em verdadeira philia. Pois não é possível dar honras iguais a desiguais – para desiguais a igualdade torna-se desigualdade, a menos que uma medida (metron) seja preservado. Igualdade pode ser uma fonte de discórdia tão rica quanto a desigualdade. A igualdade mecânica de números, pesos e medidas difere-se da igualdade que deriva do “julgamento de Zeus” e se aplica as questões públicas e privadas – a igualdade de Zeus é proporcional, distribuindo as maiores recompensas àqueles que se distinguem pela virtude e pela origem. Nenhuma ordem pode ser justa sem a igualdade proporcional, sem um claro sistema de meritocracia.
Mas mesmo a igualdade proporcional não pode ser aplicada sem alguma ressalva. Aqueles que não possuem qualificação pessoal para ocupar cargos de honra devem ter algum meio de ascensão a ele por de outra maneira, evitando ressentimentos. Assim a eleição por sorteio precisa complementar a eleição aristocráticas por meio de qualificação pessoal. Tal procedimento apresenta riscos, mas ao estadista resta apenas “invocar Deus e a sorte” para que o sorteio traga mínimo dano à ordem reta. Mais que uma questão de classe, Platão trata aqui de uma questão espiritual distinguindo as “marionetes” conforme suas inclinações para as virtudes e os vícios, buscando evitar uma explosão dos instintos mais baixos da população, e também não ofender os de espírito mais nobre – criando um vínculo de philia entre elementos heterogêneos.
As instituições propostas não diferem daquelas das pólis helênicas históricas: assembleia popular, conselho eleito, e corpo de magistrados. A população é de tamanho limitado (em torno de 40 mil) dividida em tribos, há sacerdotes, um exército com generais eleitos, e assim por diante. O significado das instituições como recipiente do espírito surge na aplicação de números cósmicos. Conforme apresentado no Timeu, a ideia do cosmo como a grande psique autônoma e dos corpos celestes como as almas divinas em movimento perfeito leva à ideia adicional das relações numéricas na natureza como a estrutura da psique. A estrutura da alma humana está, em sua preexistência relacionada às relações e aos períodos perfeitos do cosmo, mas a corporização perturba esses movimentos e a alma nasce como se não tivesse inteligência (anous psyche). A terapia para recuperar a ordem cósmica perdida ao nascimento é nutrir-se com os pensamentos e movimentos do Universo. A forma como número é o princípio que Platão aplicou na construção das instituições dos nomoi – a forma política da pólis torna-se um cristal de números que refletem a estrutura matemática do próprio cosmos.
Concretamente, as relações numéricas da forma política seriam governadas pelo simbolismo do Sol – o número chave é 12 (doze). Este número-chave determinará toda a forma da pólis, a começar pelo número de tribos cada uma considerada como “coisa sagrada, um dom de Deus, correspondente aos meses e à revolução do universo”. Os números de terrenos, de cidadãos por tribo, de conselheiros, e assim por diante serão definidos com relação ao 12. Também há uma predominância dos números 1, 2, 3, e 4 (tetráctis pitagórica) – a relação dos primeiros inteiros (2:1, 3:2, 4:3) são também as relações matemáticas que determinam a oitava, a quinta e a quarta, como se Platão tivesse a intenção de formatar a pólis como um símbolo musical, relacionando-a à harmonia cósmica.
A forma política destina-se a servir à realização do espírito na vida da comunidade. Assim, a mais elevada magistratura é projetada como o conjunto dos Guardiões das Leis, que deve necessariamente ser ocupada pelos homens mais obedientes às leis. Também é vital que a leis sejam boas, ou seja, que o nous viva nos nomoi – somente assim a obediência às leis resultará na eudaimonia do homem e da comunidade. Os altos magistrados são servos dos deuses na medida que são servos das leis.
O legislador precisa falar ao povo sobre o propósito da vida e a natureza da conduta cara a Deus e seguidora Dele. Recordar-lhes que Deus, e não o homem, é a medida de todas as coisas; e que o homem deve estabelecer uma ordem verdadeira de temperança e justiça em sua alma, aplicando esses princípios em sua conduta pessoal e comunitária. O hiato entre Deus e o homem deve ser preenchido pela Persuasão (peithô). Assim, as leis devem ser constituídas de duas partes: a parte coercitiva, a “prescrição ditatorial”, e uma parte persuasiva, o proêmio explicativo. A forma literária do proêmio é mediadora do nous para a pólis dos nomoi, e a expansão do significado de nomoi para incluir a forma musical associa a elaboração dos proêmios à harmonia cósmica que se cristalizou nas relações numéricas da forma política. O Proêmio é a forma que Platão criou para sua poesia religiosa; e os grande proêmio, em particular o que preenche todo o livro X, são a expressão final exotérica do pensamento de Platão sobre Deus e sobre o destino do homem.
Na pólis dos nomoi os homens não são filhos de deuses, eles são marionetes, a medida divina não é a ordem da alma – Deus e o homem afastaram-se e a distância agora precisa ser coberta pelos símbolos de um dogma (da visão de Agathon (República), o homem caiu para a aceitação de um credo). A massa de homens cuja força espiritual é fraca só pode absorver o espírito na forma de símbolos dogmáticos. O mínimo demandado por Platão compreende três dogmas: (1) a crença de que os deuses existem; (2) a crença de que eles cuidem dos homens; e (3) a crença de que eles não podem ser aplacados, ou “subornados”, com sacrifícios e orações. A instituição desse dogma mínimo assumiria a forma de um nomos, constituído da provisão da punição da impiedade (confinamento ou morte) e do proêmio (que preenche a maior parte do livro X).
É o destino da alma humana que está em jogo, e Platão ataca o agnosticismo e as aberrações espirituais de sua época examinando a decadência do mito antigo, o ceticismo dos jovens, os pensadores livres (tipos de esprit fort), as devastações produzidas na mente dos semi-educados pelo progresso da ciência natural. A organização de comunidades sectárias e de credos privados e esotéricos, e as extravagâncias de mulheres histéricas – um exame que poderia ter sido escrito hoje. A doença anímica, a desorientação espiritual (nosos) é corriqueira no indivíduo, e a maioria dos homens são suscetíveis a ela. O caráter epódico do proêmio, sua disposição para encartamento da alma, deveria ser o instrumento profilático desta enfermidade da alma.
Mas persuasão não o é suficiente para a prevenção da substância espiritual. Quando a doença eclode apesar de todas as precauções, é preciso adotar medidas coercivas contra os indivíduos afligidos por ela. A aplicação da lei contra a impiedade é confiada a um magistrado especial: Conselho Noturno (reuni-se diariamente entre a aurora e o nascer do sol, evitando que os afazeres do dia perturbe suas mentes).
O Conselho Noturno é composto dos dez Guardiões das Leis mais velhos, de sacerdotes insignes, do ministro da educação, de homens que foram enviados ao exterior para estudar instituições estrangeiras, e de um número de jovens selecionados pelos anciões que atuaria como informantes sobre a vida e os problemas da pólis. A função primordial do Conselho Noturno é julgar as infrações do credo. Este tribunal espiritual completa a construção da pólis como uma comunidade teocrática.
A ideia de um tribunal espiritual pode soar bizarra para a mente hodierna que acredita na liberdade de espírito como alternativa ao controle espiritual e à aplicação de um credo. Dificilmente um projeto tipo platônico poderia pragmaticamente resolver nossos problemas atuais, mas também já passou da hora de abandonarmos a ilusão de que tal “liberdade” conduzirá sem erro a uma sociedade que merece o nome de ordem.
O Conselho Noturno é um instrumento de salvação da alma, da preservação das almas em sintonia com os nomoi. Seus membros precisam ser de uma qualidade que lhes possibilite serem juízes e educadores das almas errantes. Uma elite formada por sua natureza e por uma educação superior que lhes garanta um domínio mais perfeito da areté em palavras e ações do que a massa de seus concidadãos.
A educação mais rigorosa dos guardiões tem o objetivo de criar neles uma consciência crítica da realidade do espírito, assim como a habilidade de expressar essa realidade e seus problemas num discurso sensato. O dogma mínimo para a massa de pessoas é complementado na pólis por uma forma mais elevada do credo para a elite espiritual e intelectual. O primeiro requisito para esta conscientização mais elevada é o pleno entendimento do nous hegemon – não baste ter as virtudes da coragem, temperança, justiça e sabedoria, é preciso compreender como elas convergem para a unidade do nous que as governa. O mesmo tipo de entendimento deve ser estendido aos demais problemas da alma e de sua ordem, como o entendimento do kalon (Bom, Belo e Verdadeiro) e do agathon (Bem Supremo). Os eleitos do Conselho Noturno também precisam apreender duas doutrinas fundamentais: (a) que a alma é mais antiga de todas as coisas criadas, de que ela é mais antiga e divina do que qualquer coisa que derive seu movimento de uma causa prévia; e (b) que a ordem nos movimentos das estrelas revela o nous como o seu primeiro governante. Nenhum homem mortal poderá alcançar o verdadeiro temor de Deus (theosebeia) se não entender estar duas doutrinas da alma como o governante imortal de todos os corpos, e do nous que é revelado nas estrelas. E para dar apoio ao entendimento destas doutrinas, os guardiões devem, por fim, ser bem instruídos nas ciências preparatórias; eles devem ver a conexão entre a compreensão do cosmos e os problemas da música; e devem ser capazes de se expressar corretamente em relação a estes vários problemas.
Mas quem educará os educadores? Neste ponto a conversa dos andarilhos retorna co campo imaginativo para a realidade da situação. Os fundadores terão que injetar o espírito na nova pólis em associação com seus futuros guardiões. E para tal empreitada Clínias e Megilo recorrem ao auxílio do Estrangeiro (Platão).
“Dou o nome de educação (paideia) à virtude (areté) na forma que ela é adquirida por uma criança, […] de forma que, do início ao fim da vida seja odiado o que precisa ser odiado, e amado o que precisa ser amado.” – assim o Estrangeiro define paideia, sendo a educação tema vital no diálogo – se na República a ênfase era dada na educação dos governantes, agora, nas Leis, é imperativo educar uma vasta camada de homens.
Platão estabelece um paralelo entre o mau legislador e o médico de escravos, que corre de um para outro dando rápidas ordens, sem dar-se ao trabalho de aprofundar-se no diagnóstico, nem em dar explicações ao enfermo. Já o médico de cidadãos os trata como discípulos, analisando-os cuidadosamente, explicando-lhes o fenômeno que lhes aflige e dando detalhadas recomendações – sua preocupação maior é com a prevenção, e não apenas a cura. Os legisladores gregos naquele momento seriam como o médico de escravos, ocupados apenas em punir os malfeitos, sendo necessários que sejam como os médicos de cidadãos, i.e. preocupados em evitar que os malfeitos sejam cometidos – daí a importância dos proêmios dado a formulação e fundamentação das normas de bem agir (legislador como educador).
O objetivo da legislação é a totalidade da virtude, com os bens humanos (saúde, força, beleza e riqueza) submetendo-se às virtudes da alma (sabedoria, coragem, temperança e justiça) – a phrônesis, a areté do espírito (alcançar a Verdade através do Bem agir). Toda ação legislativa é educação, e a lei o seu instrumento.
Platão indica nas Leis que a paideia começa na primeira infância, pois a educação deve despertar na alma infantil o desejo do que amanhã deverá desabrochar e chegar a bom termo na alma do homem – a paideia começa na paidia (jogos de criança). Gostos e aversões não são uma orientação para a qualidade – podemos ter prazer com o que é ruim, e podemos sentir aversão pelo que é bom. Esse conflito é de fundamental importância para o desenvolvimento da cultura, porque por um lado o que é ruim nas artes, no pensamento e na conduta parece dar mais prazer para os pouco instruídos do que é bom, enquanto por outro lado é preciso um longo treinamento árduo para que o homem possa sentir um prazer sincero e confiável numa obra de arte ou pensamento que seja bom – o mau gosto vem fácil, o bom gosto requer disciplina e treino.
A criança deve ser instruída a associar o prazer com o que é bom. A harmonia do prazer com o agathon deve ser estimulada nos jogos infantis, e deve seguir nos jogos adultos – artes e cultos como representação simbólica da vida melhor e mais nobre. As artes devem atrai o homem ao Bom, Belo e Verdadeiro, afastando-o dos seus contrários. Platão concebe a cultura do homem como formação da alma. (O controle oclocrática da esfera cultural desenvolve-se na última fase de desintegração de uma sociedade – estágio em que a presente humanidade se encontra).
A paideia visa o Bem, é a direção da vida humana pelo fio do logos, manejado por Deus – incultura é a falta de sinfonia entre os apetites e a razão. O homem inculto não deveria ter qualquer influência no governo, pois um dirigente que não acredita em Deus nem age de acordo com seus preceitos arrastará todos para o abismo. Este é um dos sete axiomas de governo: (1) os pais devem governar os filhos, (2) os nobres devem governar os não-nobres, (3) os velhos os jovens, (4) os senhores os escravos, (5) os melhores os piores, (6) os homens cultos e sensatos os incultos, e (7) o que é eleito por sorteio deve imperar sobre aquele em que a eleição não tenha recaído (princípio democrático).
Notas
Platão (427-348 a.C.) nasceu em Atenas ou na próxima Egina.
Filho de Ariston, descendente do rei Codro, Perictíone e de um irmão de Sólon do lado materno. Ainda na juventude, recebe o apelido de Platão (“largo”) por razões incertas, mas provavelmente ligadas ao seu tipo físico. Seu nome era Arístocles.
Aos 19 anos torna-se discípulo de Sócrates. Sua obra escrita nos chegou aparentemente completa (26 diálogos são considerados legítimos).
Segundo o matemático e filósofo Alfred North Whitehead (1861-1947), “a mais segura caracterização da tradição filosófica europeia é que esta se constitui de uma série de notas de rodapé a Platão.”
Os subtítulo dos diálogos, e.g. Fedro, sobre o Belo, foram dados por Trasilo no século I, na Biblioteca de Alexandria que então comandava.
Leis, sobre a legislação é diálogo legítimo (gênero político), seguramente do período de maturidade, fase da segunda florescência filosófica de Platão.
Leis, publicado postumamente, é o último diálogo de Platão. Obra inacabada, apresenta falta de revisão conforme demonstra a ausência de ordem na exposição das matérias, omissões nas leis, referências a passagens inexistentes, repetições e contradições. Porém, esta carência de acabamento não afeta o caráter geral da obra.
Segundo Diógenes Laércio, coube a Felipe de Opúncia a honra de publicar Leis em doze livros, que corresponderiam às doze horas da caminhada e da conversa do Estrangeiro com os outros dois peregrinos. Ele também seria o autor de Epínomis, ou apêndice, às Leis, tratando da educação dos governantes.
As três personagens refletem o curso da história helênica, começando com Creta como onfalo pelo qual o mundo heleno conecta-se com sua pré-história egeia. Os três apresentam idade avançada, pois o espírito precisa ser transmitido dos velhos aos jovens que terão que dar continuidade ao seu trabalho.
A época da elaboração das Leis a Grécia vivia um movimento inusitado de ressurgimento de cidades, e a primeira providência na fundação da nova pólis era o estabelecimento de leis para regular a comunidade.
Apesar das Leis não ser um tratado de jurisprudência, o diálogo apresenta importantes contribuições para o desenvolvimento da lei criminal e aperfeiçoamento dos procedimento jurídicos.
A principal causa de interpretações equivocadas das Leis é inclinação secularista dos historiadores modernos e sua dificuldade de entender que sua teoria política baseia a ordem da comunidade na harmonia com a Medida divina.
Na Carta VII, Platão expunha a ideia de unificação das pólis helênicas (uma federação de pólis pan-helênica) numa combinação de política do poder e reforma espiritual. Maquiável encarou a mesma questão de unificação na Itália, e diante da impossibilidade de uma reforma espiritual optou pela proposta da política de força – renúncia ao espírito e queda no demonismo.
A descrição platônica do ciclo político exerceu grande influência. Aristóteles, por exemplo, retoma a fase de crescimento com a sequência família, aldeia e pólis (não inclui a federação helênica), e também encontramos a hierarquia de bens no núcleo de sua ética. Na storia eterna ideale de Vico (1668-1744) reencontramos o ciclo articulado em períodos de crescimento, ápice e declínio.
As tentativas contemporâneas de controle totalitário da esfera cultural não são mais do que o aperfeiçoamento sistemático da tirania oclocrática que se desenvolveu nas sociedades “livres” em sua última fase de desintegração. As elites corrompidas aceleram o processo equivocadamente vendo na estupidificação das massas um facilitador do seu controle.
O Estrangeiro aponta o homossexualismo como uma degeneração antinatural da vida sexual sã (636C) e censura o desregramento sexual das mulheres (637C).
Estrangeiro: “… precisais exigir de vossos poeta, obrigado-os a pôr em consonância com ela (linguagem das virtudes) o ritmo e a harmonia, para a boa educação dos jovens.” (661D)a – a indústria cultural atual faz o contrário, é instrumento de destruição civilizacional.
É em casa e na família que uma grande parte da paideia se efetua, sendo a influência doméstica da mais alta importância – as duas partes que contraem matrimônio devem propor-se como finalidade suprema procriar os filhos mais belos e melhores que for possível.
Libertar a criança das sensações de medo é o primeiro passo para uma educação para a valentia – o descontentamento e o mau humor contribuem para a sensação de medo. Platão preconiza um meio termo entre a brandura e a opressão. A primeira torna a criança hipersensível e excessivamente caprichosa, a segunda mata nela a liberdade e torna-a hipócrita e misantropa.
Nomos: espírito personificado (daimon) da Lei. Era marido de Eusébia (Piedade) e pai de Dike (Justiça) – geralmente é apenas um aspecto de Zeus, e não uma divindade separada. Segue hino órfico a Nomos: “The holy king of Gods and men I call, celestial Law [Nomos], the righteous seal of all; The seal which stamps whate'er the earth contains, Nature's firm basis, and the liquid plains: Stable, and starry, of harmonious frame, preserving laws eternally the same: Thy all-composing pow'r in heaven appears, connects its frame, and props the starry spheres; And shakes weak Envy with tremendous sound, toss'd by thy arm in giddy whirls around. 'Tis thine, the life of mortals to defend, and crown existence with a blessed end; For thy command and alone, of all that lives order and rule to ev'ry dwelling gives: Ever observant of the upright mind, and of just actions the companion kind; Foe to the lawless, with avenging ire, their steps involving in destruction dire. Come, bless, abundant pow'r, whom all revere, by all desir'd, with favr'ing mind draw near; Give me thro' life, on thee to fix my fight, and ne'er forsake the equal paths of right.” (The Hymns of Orpheus são uma coleção de 87 poemas religiosos curtos compostos no final da era helenística (século III ou II a.C.) ou no início da era romana (século I a século II d.C.). Eles são baseados nas crenças do Orfismo, um culto misterioso ou filosofia religiosa que afirmava ser descendente dos ensinamentos do herói mítico Orfeu)
Platão morreu aos oitenta e um anos. Na noite de sua morte, pediu que uma garota trácia tocasse flauta para ele. A menina não conseguiu encontrar o ritmo do nomos. Com um movimento de seu dedo, Platão indicou-lhe a Medida.