"The saving grace of the cinema is that with patience and a little love we may arrive at that wonderfully complex creature which is called man."
– Jean Renoir
Nos filmes de Jean Renoir, o ambiente natural do homem é quase sempre apresentado de forma proeminente, e é esta ênfase no homem e seu ambiente, somados a liberdade dada aos atores em improvisar, que levaram-no a antecipar o neorrealismo do pós-guerra e algumas das liberdades técnicas adotadas posteriormente pelos diretores da Nouvelle Vague.
Renoir é reconhecido por sua estética humanista: sua fotografia de foco profundo, planos de rastreamento elaborados e tomadas longas representam um esforço articulado e empático para preservar a integridade da performance de seus atores.
Mas as contribuições estéticas de Renoir ao cinema foram conspurcadas pela ideologia revolucionária que inseria em seus filmes (Renoir era ativista da Front Populaire submetida ao Comintern), restringindo sua obra a apenas um filme realmente bom, i.e. The Grand Illusion. Porém, esta mesma temática panfletária fez com que a intelligentzia insistisse em tentar vendê-lo ao grande público como um dos maiores diretores da história do cinema.
As contribuições de Renoir restringem-se a sua produção na década de 1930. Depois da II GG ele mudou-se para os EUA onde quase nada acrescentou ao cinema.
Seguem comentários sobre os filmes que marcaram sua carreira artística:
La Chienne (1931): Maurice Legrand, um caixa dócil casado com uma esposa insuportável, tem uma paixão secreta: é um pintor dominical. Ele se apaixona por Lulu, uma jovem dominada por Dédé, o cafetão para quem ela trabalha. Dédé empurra Lulu para um relacionamento com Legrand. Baseado no romance homônimo de Georges de la Fouchardière publicado 1929. Combinando observações sociais, brilho visual e inovação sonora, Renoir transformou uma história arquetípica e degradante de adultério (como diz o fantoche Guignol ao princípio: “Os três protagonistas são Ele, Ela e o Outro Cara – como sempre”) em um veículo de interessantes inovações na linguagem cinematográfica. O primeiro filme a incorporar plenamente o estilo naturalista e os temas sociais complexos que viriam a ser associados à obra de Renoir.
Boudu Saved from Drowning (1932): Livreiro salva um mendigo de afogar-se e o protege, mas o comportamento imoral do vagabundo começa a cansar a todos. Comédia adaptada da fraquíssima peça homônima de René Fauchois. Boudou deixa claro a razão dos cineastas da Nouvelle Vague considerarem Renoir seu antecedente supremo e figura paterna: a teoria do realismo de André Bazin – especialmente na medida em que se preocupa com a preservação das realidades físicas do tempo e do espaço – é repetidamente exemplificada pelo uso de planos longos, o uso de locações reais, a espontaneidade dos atores, movimento de câmera, profundidade de campo, e a contínua sugestão da existência de um mundo além do quadro. Porém, além da questão formal, Renoir antecipa a Nouvelle Vague também na temática subversiva. Tanto que o público francês se indignou com o comportamento antissocial da personagem Boudu a ponto da polícia ter sido chamada a vários teatros para restaurar a ordem; e o filme escandalizou tanto o crítico do New York Times Bosley Crowther quando estreou nos Estados Unidos em 1967 que ele saiu no meio da sessão. Como fizera em La Chienne, Renoir apresenta o mendigo como um ser livre das supostas opressões sociais. Mas em nenhum momento o diretor convence na apresentação de um quadro social opressor, restando apenas o gemido da vileza revolucionária.
The Grand Illusion (1937): Durante a I GG, dois oficiais franceses são capturados e enviados a um campo de prisioneiros de guerra alemão. Seguem-se várias tentativas de fuga até que eles são finalmente enviados para uma fortaleza aparentemente inescapável. Filmado apenas três anos antes da II GG, o filme remete a uma época e guerra diferente, nas palavras do diretor, “baseada no jogo limpo, uma guerra sem bombas atômicas ou tortura” – aparentemente Renoir esqueceu-se dos horrores nas trincheiras e das armas químicas usadas na I GG. Usando o campo de prisioneiros de guerra como um microcosmo, Renoir estuda a interação de um grupo heterogêneo de oficiais franceses, forçados a viver juntos sob o olhar de seus captores alemães. O tenente Maréchal (interpretado por Jean Gabin) é o bretão sensato, mal educado, mas infinitamente confiável. O capitão de Boeldieu vem da aristocracia e carrega suas luvas brancas e seu monóculo de desdém de um campo para outro. Rosenthal (Marcel Dalio) é de ascendência judaica rica e dissipa o preconceito dos homens ao seu redor através da generosidade nos modos e de meios. E cruzando seu caminho de forma memorável está o arquétipo do oficial teutônico, capitão von Rauffenstein (interpretado por Erich von Stroheim). Curiosamente Renoir apresenta em The Grand Illusion o retumbante fracasso das previsões marxistas de que na guerra a classe operária dos países se uniriam contra suas nações – vemos não apenas a prevalência do nacionalismo, mas a união das diferentes classes sociais, com um comovente retrato idealizado (daí, talvez, a grande ilusão) da nobreza humana permeando todas elas num mundo dividido horizontalmente por semelhanças, não verticalmente por fronteiras. The Grand Illusion é uma meditação sobre o colapso da antiga ordem civilizacional europeia – Renoir deixa de lado a ideologia revolucionária e produz seu primeiro bom filme.
The Human Beast (1938): Engenheiro ferroviário torturado (interpretado por Jean Gabin) se apaixona por uma mulher casada e problemática que ajudou seu marido a cometer um assassinato. Adaptação do romance homônimo (1890) de Émile Zola. Renoir tratou o romance de Zola com ascetismo. Ele explicou desta forma: “O que me ajudou a fazer The Human Beast foram as explicações do herói sobre seu atavismo. Eu disse a mim mesmo, não é muito bonito, mas se um homem tão belo como Jean Cabin dissesse isso ao ar livre, com o horizonte atrás dele e talvez algum vento, poderia ter uma certa validade. Esta é a chave que me ajudou a fazer este filme.” – a personagem Latier de Renoir odiava-se por matar Séverine, ao passo que o Latier de Zola ficou alegre e orgulhoso após seu crime e nunca sentiu remorso. (a sensibilidade generosa de Jean Renoir parecia estar em desacordo com o determinismo estéril do romance), Zola empregava em sua obra a ideia determinística da hereditariedade e do meio na formação da personalidade – um mundo fatalista onde o carma hereditário seria inescapável, não havendo espaço para a ascendência do darma. Notar como os locais claros durante o dia dão lugar progressivamente a interiores escuros e noturnos ou a paisagens industriais sombrias, à medida que a liberdade dos protagonistas gradualmente diminui. É o melhor trabalho do ator Jean Gabin.
The Rules of the Game (1939): A vida burguesa na França no início da II GG, com os ricos e os seus servos interagindo num castelo no campo. A citação de abertura do polímata francês Pìerre Beaumarchais (1732-1799) resume a proposta do filme: "Corações sensíveis, corações fiéis, que evitam o amor onde quer que ele vá, deixem de ser tão amargos: é um crime mudar? Se o Cupido ganhou asas, não foi para voar? Não foi para voar? Não foi para esvoaçar?" Renoir retornava ao panfletismo de Boudu Saved from Drowning retratando a burguesia como um bando de animais pueris no cio. Detestado por público e crítica no seu lançamento, o filme foi resgatado e alçado ao panteon dos cânones pela intelligentzia a partir dos anos 1950 por refletir a enfermidade espiritual que desejavam insuflar na sociedade – The Rules of the Game não é uma denúncia de deterioração social que levava o mundo a uma nova guerra, mas apenas mais um instrumento neste sentido. Sua supervalorização posterior só revela nosso estado de putrefação moral e espiritual, e só vale ser visto como o ápice dos traços estilísticos que o diretor desenvolveu desde seus filmes mudos.
The River (1951): Baseado no romance autobiográfico da inglesa Rumer Godden (1907-1998), o filme contrasta as dores do amadurecimento de três jovens com a imutabilidade do rio Bengala, em torno do qual se desenrola a suas vidas quotidianas. Uma visão idílica da Índia e seu povo, The River explora as frágeis conexões entre emoções transitórias e a criação eterna. Destaque para o uso de cores (filmado em Technicolor) e a dança da personagem Melanie. Sem apelar à ideologia revolucionária, Renoir entrega um filme humano e sensível.