O Gênesis narra a cosmologia judaica em cinquenta capítulos: o nascimento e a queda do homem, a destruição do mundo pelo dilúvio, seu repovoamento pelos filhos de Noé (Cam, Jafé e Sem), a história de Abraão e o início do povo judeu com as sagas de Isaque, de seu filho Jacó e, do filho deste, José. A narrativa se encerra com o estabelecimento dos judeus no Egito.
Há várias semelhança nas narrativas de Gilgámesh (Babilônia), da Teogonia de Hesíodo e o Gênesis. Nascidas da tradição oral, estima-se terem sido copiladas entre os séculos X e VI a.C.. Tal similitude advinda de pontos diferentes indica uma profunda marcação destes mitos em nossa alma. E mitos só podem ser entendidos interpretando seu sentido simbólico, e nunca tomados literalmente.
Como todo mito fundador, o Gênesis, particularmente os três primeiros capítulos, nos ajuda a apreender a realidade sobre o cosmo e sobre nós mesmos:
“No princípio criou Deus o céu e a terra.” (1:1) – existem dois mundos, o espiritual (céu) e o material (terra). Correspondem respectivamente a Urano e Gaia na Teogonia de Hesíodo. Dois polos tensionais que também habitam nosso âmago.
“...as trevas cobriam a face do abismo...” (1:2) – também recorda Hesíodo “primeiro nasceu caos”, no princípio tudo é mistério. Com diz Chesterton, o homem flutua num mar de mistérios.
“Faça-se a luz.. e dividiu a luz das trevas.” (1:3-4) – algo deste mistério nos foi revelado por Deus. Mas muito ainda nos é incompreensível, e seguirá misterioso até o dia do Juízo Final. Soberba acreditar poder saber tudo.
“E da tarde e da manhã se fez o dia primeiro.” (1:5) – a inversão evoca a ideia de recomeço – tudo vive e morre numa sucessão interminável de ciclos. O dilúvio também marca a ideia de recomeço, ciclo.
“...e separe umas águas das outras águas.” (1:6) – Deus cria o espaço, a extensão da matéria. Tudo que existe no mundo manifestado está subordinado ao espaço, o tempo e o número. Esta criação e formatação do espaço lembra o trabalho dos Titãs e Hecatônquiros na cosmologia de Hesíodo.
“Fez Deus, pois, dois grandes luzeiros, um maior, que preside o dia; outro mais pequeno, que preside à noite...” (1:15) – as coisas deste mundo são feitas em dualidades complementares (não excludentes), e.g. sol-lua, homem-mulher, ativo-passivo, ato-potência, yin-yan, purusha-prakriti. A estrutura da realidade é dual.
“Façamos o homem à nossa imagem e semelhança...” (1:26) – o homem é criado em sequência aos animais (aspecto material) mas a imagem e semelhança de Deus (aspecto espiritual) – polos tensionais do céu e da terra recriados no microcosmo humano. Necessário haver um ser capaz de reconhecer Deus e sua obra, pois apenas o nada é incognoscível.
“...e criou-os macho e fêmea.” (1:27) – a humanidade foi criados antes de Adão e Eva. Homem e mulher – replicando a dualidade complementar estrutural do mundo, como sol e lua.
“Eis aí vos dei eu todas as ervas, que dão as suas sementes sobre a terra; e todas as árvores, que têm as suas sementes em si mesmas, cada uma segundo a sua espécie, para vos servirem de sustento a vós, 30 e a todos os animais da terra, a todas as aves do céu e a tudo que tem vida e movimento sobre a terra, para terem de que se sustentar.” (1:29-30) – cabe ao homem usar para seu proveito os recursos naturais. E que o faça com a centelha de semelhança a Deus, com sabedoria.
“E viu Deus todas as coisas que tinha feito, e eram muito boas.” (1:31) – coisas boas pois refletem a ordem divina. Cabe ao homem apreender a ordem cósmica e transmiti-la as gerações futuras. Este era o conceito grego de paideia (educação, formação) transmitir na poesia, música, teatro, roupas, comportamento, arquitetura, enfim, em tudo a ordem cósmica.
“...e descansou no dia sétimo, depois de ter acabado as suas obras.” (2:2) – Deus (assim como Urano castrado) entrega sua criação ao homem. Deus deixa de ser Criado e passa a ser Juiz. O número 7 é igual a 3 (número do espírito) mais 4 (número da matéria) – trivium e quadrivium. O mundo é feito de espírito e matéria.
“Formou pois o Senhor Deus ao homem do limo da terra, e assoprou sobre o seu rosto um assopro de vida, e recebeu o homem, alma e vida.” (2:7) – a humanidade criada em potência agora passa a existir em ato (Adão). Tudo se manifesta em potência e ato. É preciso primeiro existir em potência para poder existir em ato. O homem nunca voará (ato) como os pássaros, pois não tem esta potência. Viemos do “limbo da terra” reforçando nossa dualidade – espírito (“semelhança de Deus”) e matéria (“tu és pó e ao pó tornarás”).
“Tinha também o Senhor Deus feito nascer da terra todas as castas de árvores agradáveis à vista, e cujo fruto era gostoso ao paladar: e a árvore da vida no meio do paraíso, com a árvore da ciência do bem e do mal.” (2:9) – na nossa dualidade interior, entre os polos espiritual e material, trafegam nossos desejos. Estes serão legítimos quando sancionados pelo espírito e ilegítimos quando integralmente materiais.
“Mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem, e do mal. Porque em qualquer tempo que comeres dele, certissimamente morrerás.” (2:17) – morte anímica provocada pela exaltação dos desejos – abandono do espírito e domínio da matéria. A soberba de saber tudo (o que é bem e mal) é o maior pecado (húbris para o grego antigo também era o maior pecado). Nossa alma padece quando chafurdamos na matéria.
“E da costela que tinha tirado de Adão, formou o Senhor Deus uma mulher, que Ele lhe apresentou.” (2:22) – esta mulher (Eva) simboliza os desejos negativos, equivalente a Pandora na Teogonia.. Simbolicamente o homem representa o espírito, tanto o lado legítimo (masculino), positivo, quanto o negativo (feminino – perversão dos desejos evolutivos – exaltação desarmônica de ser perfeito). E a mulher representa o lado material positivo (masculino – amoroso, desejos sublimados, legítimos), como também o negativo (feminino – desejos ilegítimos, insaciabilidade material e dionisíaca). Não se trata aqui de sexos, mas sim de aspectos do ser humano.
“Ora, Adão e sua mulher estavam nus e não se envergonhavam.” (2:25) – não se envergonham pois o pecado original ainda não havia acontecido em ato, apenas já existia em potência. Adão é a espécie humana (homem e mulher).
“É de saber que a serpente era o mais astuto de todos os animais da terra...” (3:1) – serpente simboliza a vaidade, a soberba. Ela habita dentro do homem. Sua língua bifurcada representa a dualidade dos dilemas morais – faço ou não faço. Surge o problema da húbris. Errar moralmente é matar o espírito e abraçar o corpo, e a sublimação dos desejos é matar o corpo e abraçar o espírito.
“...e vós sereis como uns deuses conhecendo o bem e o mal.” (3:5) – a revolta da criatura, a soberba, o maior pecado. Crer-se um deus.
“...e deu a seu marido, que comeu do mesmo fruto como ela... no mesmo ponto se lhes abriram os olhos, e ambos conheceram que estavam nus” (3:6-7) – o pecado original (soberba) é cometido em ato, vem o sentimento de culpa.
“A mulher que tu me deste por companheira, deu‑me desse fruto, e eu comi dele.” (3:12) – homem erra ao fugir de suas responsabilidades, somente o arrependimento cura a culpa.
“E o Senhor Deus disse à serpente: Pois que tu assim o fizeste, tu és maldita entre todos os animais e bestas da terra: tu andarás de rojo sobre o teu ventre, e comerás terra todos os dias da tua vida.” (3:14) – Deus impõe a serpente (vaidade, soberba) o exercício da humildade – a cura espiritual da soberba é a humildade.
“Ela (mulher) te pisará a cabeça e tu procurarás mordê‑la no calcanhar.” (3:15) – mulher como desejos, aqui no seu aspecto positivo, desejos serão sublimados pisando a cabeça da cobra (vaidade, soberba, desejos ilegítimos). Eterna luta interna do homem contra os desejos ilegítimos que o desvia da ascensão evolutiva ao Espírito.
“Disse também à mulher: Eu multiplicarei os trabalhos dos teus partos. Tu parirás teus filhos em dor, e estarás debaixo do poder de teu marido, e ele te dominará.” (3:16) – o espírito deve dominar a matéria (não se trata dos dois sexos). Assim deve funcionar o mundo, esta é a devida hierarquia entre espírito e a matéria, esta é a tensão inerente ao ser humano. Aqui “teus filhos” são os prazeres e desejos ilegítimos que lhe custaram caro animicamente.
“E Adão pôs à sua mulher o nome de Eva, por causa de que ela havia de ser a mãe de todos os viventes.” (3:20) – o desejo passa a ser mãe da humanidade, e o problema do homem será como resolver isso.
“Fez também o Senhor Deus a Adão, e a sua mulher, umas túnicas de peles, e os vestiu com elas.” (3:21) – o homem escolheu a vida material sobre a espiritual, animalizou-se ao afastar-se do divino. Todo erro moral, pecaminoso, é uma perda anímica.
Os três primeiros capítulos do Gênesis apresentam nossa concepção existencial. Somos seres entre o céu e a terra, entre o espírito e a matéria e vivemos uma tensão interna permanente entre o desejo de subir ao céu, ascendendo ao Espírito, e o desejo de descer a terra, entregando-se à Matéria. O erro moral traz a culpa, e o arrependimento recupera a potência de seguir o caminho evolutivo. Mas esta retomada não está garantida, e seguir o caminho evolutivo será uma batalha de toda a vida humana.
A bifurcação da decisão moral é característica marcante do ser humano – quando em dúvida sobre que decisão tomar, pergunte a Deus o que Ele gostaria que você fizesse (Jesus nos ensinou como salvar nossas almas).
Notas
Gênesis pertence ao Antigo Testamento e é o primeiro livro do Pentateuco (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) – a Torá (livro de instruções) para os judeus. Tradicionalmente considerado como recebido por Moisés no Monte Sinai em 1400 a.C..
A denominação Gênesis (Bereshit, ou “no princípio”, em hebraico) é grega – estabelecida na tradução Septuaginta (setenta rabinos teria traduzido em setenta dias os livros para o grego em 260 a.C. para atender aos judeus que não falavam hebraico).
A Vulgata é a tradução do Septuaginta para o latim, conduzida por São Jerônimo em 400 d.C. – tornou-se a versão oficial da Igreja Católica.
O idioma hebraico praticamente desapareceu durante o cativeiro da Babilônia (cerca de 600 a.C.), circunscrita ao rabinato (e.g. Jesus não falava hebraico, mas sim aramaico). O hebraico só volta a propagar-se com a criação do Estado de Israel onde é língua oficial.
A Bíblia não tem uma língua sagrada para leitura litúrgica como o Vedas (sânscrito), o Torá (hebraico) e o Corão (árabe).
Toda cosmologia apresenta um começo e um fim. Também é base das religiões stricto sensu, as abraâmicas, i.e. judaísmo, cristianismo e islamismo. No cristianismo temos o Gênesis e a Apocalipse. Toda cultura tem um mito fundador.
Simbolicamente Abraão inicia a linhagem judaica (seu filho Isaque com Sara) e árabe (seu filho Ismael com a escrava Agar).
A denominação “criacionismo” é fundamentalmente uma criação dos defensores da teoria da evolução darwiniana para confundir o debate e disfarçar a ausência de provas de sua teoria. O Gênesis é um livro simbólico e sempre erra quem o toma literalmente.
A metafísica é essencialmente composta da cosmologia (origem e evolução dos seres) e ontologia (estudo das propriedades do ser).
Símbolo vem do grego: sym=junto e bolom=apanhar. Captar o símbolo de algo é entender e juntar todos seus diferentes significados.
O contrário de simbólico é diabólico (dia é o contrário de sym). Diabólico impedir-nos de entender como as coisas são realmente.
Deus criou o cosmo ad nihilo, criou-o do nada. Formas de criação no mundo manifestado: geração e transformação. (Santo Agostinho)