“Atenienses, estou longe de argumentar em meu próprio interesse, como se poderia imaginar, porém no vosso.” – Sócrates endereçando-se aos jurados (Apologia – 30d)
No inverno de 400 a.C. para 399 a.C. três cidadãos atenienses, Méleto, secundado por Ânito e Lico, apresentaram ao rei-arconte de Atenas duas acusações: (a) Sócrates teria se recusado a reconhecer os deuses da Cidade, substituindo-os por entidades demoníacas (crime de ateísmo ou impiedade), acusação de Méleto. (b) Sócrates teria corrompido a mocidade, ensinando-lhe tais coisas (crime de subversão), acusação de Ânito. Nenhuma destas acusações era verdadeira, mas Atenas estava saindo da guerra do Peloponeso, que perdera para Esparta, e sofrera o “Governo dos 30”, entre os quais havia alunos de Sócrates. Depois de depostos e exilados, estes foram perdoados causando perturbação na população. Uma tensão para qual Sócrates seria o bode expiatório. Contribui para sua condenação o fato de Sócrates (através da prática da maiêutica) ter desmascarado muitos políticos, artistas, artesões e sofistas, indispondo-os com ele. O plano era que Sócrates apela-se contra a pena de morte e acabasse exilado, mas isso ele nunca aceitou.
O rei-arconte aceitou a queixa, dirigiu o inquérito e convocou 501 jurados homens com mais de 30 anos. Após um julgamento que durou entre nove e dez horas, Sócrates foi considerado culpado por uma diferença de 30 votos. Posteriormente, votada a pena de morte por ampla maioria, Sócrates foi imediatamente conduzido à prisão para aguardar a execução que foi adiada por coincidir com interditos religiosos. No dia seguinte em que as proibições acabaram, Sócrates tomou um cálice de cicuta.
Apologia explicita a insolúvel tensão ontológica entre o indivíduo e a coletividade – o indivíduo é único, mas também gregário (zoon politikon) – o difícil equilíbrio da liberdade individual e as obrigações sociais, conflito entre as consciências individual e coletiva. Com a morte de Sócrates a filosofia passou a ser um ato da consciência individual autônomo e completamente independente do conjunto das consciências externas, porém sem nunca desprezar a herança social. Platão nos mostra a vida do filósofo: um desafio constante na eterna batalha entre indivíduo e massa social, entre virtude e vulgaridade, entre filosofia (amor pela verdade) e sofismo.
O apego de Sócrates às suas convicções em detrimento do pensamento coletivo, mesmo diante da morte, marca o nascimento da filosofia, pois esta nunca é coletiva, apenas individual. Talvez o ato humano de maior coragem e consequência na história da humanidade – análogo ao ato sacrificial de Jesus Cristo para o nascimento do Cristianismo. Sócrates foi condenado à morte não pelos banais crimes a ele imputados, mas por ser voz dissonante do consenso coletivo. Uma prova de que a conduta moral brota do interior do indivíduo e não de um conjunto de normas exteriores.
O método investigativo socrático, que tanto antagonismo lhe trouxe, leva o interlocutor a estudar sua opinião, identificando seus próprios erros e encontrando a resposta correta (maiêutica – análogo a um parto) – a argumentação dialética que provoca a inteligência alheia a descobrir a verdade por si própria.
Platão insinua no diálogo Fedro e na Sétima Carta que determinados conceitos não são expressáveis em palavras (modelo cognitivo platônico – difere dos ensinamentos não escritos, ou agrapha dogmata). É frequente terminar seus diálogos num impasse cuja solução deveria ser intuída pela alma do leitor – como num relâmpago que ilumina a mente.
Em sua defesa Sócrates alega ter uma sabedoria meramente humana (“só sei que nada sei” – frase não encontrada no Sócrates de Platão ou Xenofonte) – o homem tem um limite de conhecimento e não deve pretender tudo saber, há que curvar-se diante dos grandes mistérios. E critica aqueles (políticos, artistas, artesões e sofistas) que acreditam saber mais do que sabem (inclui falácia de autoridade – argumentum magister dixit – principalmente no caso de artistas e artesões) ou fingem não saber o que sabem. A superioridade intelectual de Sócrates é ter consciência da limitação de seu conhecimento diante do conhecimento dos deuses.
Sócrates viveu para fazer transparecer a verdade para os atenienses, combater a ignorância, missão que considerava sagrada (fora indicado como o mais sábio dos homens através da Pítia em Delfos) – unidade das virtudes da piedade, justiça, coragem e sabedoria.
Após rebater todas as acusações, Sócrates afirma não ter medo de morrer por fazer o que é certo (educar o povo ateniense para a verdade), e que sua própria morte seria um prejuízo maior à cidade que para ele. O que conta não é a consequência dos seus atos, mas se os mesmos eram justos ou injustos, bons ou maus – em Górgias surgirá a sentença de que é preferível sofrer uma injustiça que praticar uma.
Ele não procura esquivar-se da morte propondo, por exemplo, o exílio, pois isso soaria como uma confissão de culpa (ao invés irrita o júri propondo que o enviassem ao Pritaneo). E isto seria uma renúncia de sua missão e da sua completude – estava em jogo a reafirmação da sua própria existência – a vitória na superação das tentações da vida. Para Sócrates, morte é a última e decisiva confirmação da vida – ele morre socraticamente, i.e. verdadeiramente humano no genuíno espírito da piedade.
E, finalmente, assim se despede de seus apoiadores “está na hora de nos irmos: eu, para morrer; vós, para viver. A quem tocou a melhor parte, é o que nenhum de nós pode saber, exceto a divindade.” Um homem que vive e morre como Sócrates tem em Deus suas raízes.
Notas
Platão (427-348 a.C.) nasceu em Atenas ou Egina.
Filho de Ariston, descendente do rei Codro, e Perictíone, e de um irmão de Sólon do lado materno. Ainda na juventude, recebe o apelido de Platão (“largo”) por razões incertas, mas provavelmente ligadas ao seu tipo físico. Seu nome era Arístocles.
Aos 19 anos torna-se discípulo de Sócrates. Sua obra escrita nos chegou aparentemente completa (26 diálogos são considerados legítimos).
Segundo o matemático e filósofo Alfred North Whitehead (1861-1947), “A mais segura caracterização da tradição filosófica europeia é que esta se constitui de uma série de notas de rodapé a Platão.”
A autenticidade da autoria da Apologia de Sócrates não está em discussão. É obra da primeira fase de Platão – diálogos socráticos ou aporéticos.
Este texto é diferente de todos os outros diálogos, pois não é um diálogo, e sim um relato histórico (Platão estava assistindo – Xenofonte, também aluno de Sócrates, escreveu uma apologia e esta está bastante alinhada com a de Platão). É um dos poucos e melhor registro da vida de Sócrates.
Sócrates (469-399 a.C.) era pobre, morreu paupérrimo. O pai fora escultor e a mãe parteira (enfermeira), ele era casado (esposa Xantipa) e pai de três filhos. Andava descalço. Herói de guerra, de aparência grande e feia.
Sócrates às vezes ficava paralisado por seu daemon, que o impedia de cometer más ações (um espírito – consciência moral).
Após ser sentenciado à morte, Sócrates tranquiliza seus apoiadores dizendo estar seguro de ter feito o certo, pois seu daemon não se manifestou em nenhum momento.
O processo: há uma acusação pública (i.e. contra a sociedade ateniense) feita ao rei-arconte (rei no sentido jurídico), se este julga procedente (aceita a acusação) então são sorteados os jurados entre os cidadãos (tem de ter certa idade). Há um debate entre acusador e acusado. Os jurados primeiro julgam a procedência da acusação e depois julgam a pena (o acusador sugere e pena junto com a acusação). Caso o réu seja inocentando o acusador recebe a pena que ele mesmo sugeriu.
A principal contribuição platônica foi o método científico (dialética maiêutica) aplicado na busca da verdade. A contribuição platônica maior de todas é a noção da hierarquia dos conceitos – o mundo sensível está abaixo do mundo das ideias e este está abaixo do mundo dos princípios. A contribuição aristotélica é a maior de todas do ponto de vista instrumental porque é a invenção da própria análise filosófica.
Sócrates inicia sua defesa repetindo a acusação – um procedimento incorporado no disputation escolástico.
Ao explicar o porquê de nunca ter-se envolvido na política Sócrates define-se como um brâmane (31d/e-32a).
Pritaneo: local onde moravam, à custa da cidade, os heróis olímpicos.
Palamedes: desmascarou Odisseu em sua tentativa de evitar ir a Troia. Em Troia Odisseu se vinga comprometendo-o como traidor (planta ouro em sua tenda com um bilhete de Príamo). Palamades é julgado e morto.
Santo Agostinho tenta produzir uma filosofia cristã a partir de Platão. Depois São Tomás de Aquino retomará o trabalho a partir do instrumental lógico aristotélico.
Cada um de nós representa todas as potencialidades humanas (representante genético) – uma universalidade representativa. Mas não se pode dizer isso de um país, uma sociedade não representa todas as sociedades.
O filósofo espanhol Julián Marías (1914-2005) disse ser contra a pena de morte pois não sabe se a morte é boa ou ruim.
Estágios do método dialético socrático platônico: