“A civilização europeia - já repeti várias vezes - produziu automaticamente a rebelião das massas. No seu anverso, o fato da rebelião apresenta um aspecto ótimo; já o dissemos: a rebelião das massas é a mesma coisa que é o crescimento fabuloso que a vida humana experimentou em nosso tempo. Mas o reverso do mesmo fenômeno é tremendo; vista desse ângulo, a rebelião das massas é a mesma crise que a desmoralização radical da humanidade.” – José Ortega y Gasset em Quem Manda no Mundo?
“La continuité est un droit de l’homme; elle est un hommage à tout qui le destingue de la bête.” – Charles Brook Dupont-White (1807-1878), advogado francês
“O homem-massa carece simplesmente de moral, que é sempre, por essência, do sentimento de submissão a algo, consciência de serviço e obrigação.”
– José Ortega y Gasset, o homem-massa é amoral
“Massa” é o conjunto de pessoas não especialmente qualificadas, pessoas normais, “o homem médio” advindo de qualquer classe social, econômica, raça ou credo. Ortega y Gasset alerta para a substituição das minorias qualificadas pelas massas desqualificadas, a troca da qualidade pela quantidade (similar ao fenômeno descrito no Reino da Quantidade de René Guénon) – um triunfo da hiperdemocracia na qual a massa atua diretamente sem lei, por meio de pressões materiais, impondo suas aspirações e seus gostos. O mesmo ocorreu no Império Romano, levando-o a ruina.
Assim como se pensou em Roma Eterna, o homem-massa sente seu tempo superior a todos os tempos idos, e acima de todas as plenitudes já conhecidas – sente-se capaz de realizar tudo, mas não sabe o que realizar. Sente-se uma (falsa) segurança de que nada pode dar errado, que o nível de conforto trazido pelo acúmulo de descobertas e novas tecnologias nas últimas décadas está assegurado por um Estado que não pode mais falhar. Todos os avanços materiais decantavam nas mentes uma sensação de fabulosa prepotência – uma ilusão de ótica que conduz à despreocupação com o futuro, deixando sua condução aos cuidados da mecânica do universo. Tal sentimento menos de dez anos após o final da Primeira Grande Guerra demonstrava a incapacidade de entender sua herança. Ortega y Gasset, profético, alertava para o perigo que o bolchevismo e fascismo sinalizavam.
É o típico “homem do seu tempo”, que despreza o passado e, seguro de que o mundo seguirá em linha reta, abandona a preocupação com o futuro, colocando-se definitivamente no presente. Porém, o ser humano é herdeiro de seus antepassados, difere dos outros animais também por possuir memória. O homem tem direito à continuidade. Um tigre é sempre igual ao primeiro tigre, tem que começar de novo, como se não tivesse havido outro tigre antes dele. Mas o homem tem uma herança incalculável de acertos e erros do passado ao seu alcance. Dizer-se um “homem do seu tempo” é uma desculpa de não poder tomar nenhuma medida corretiva, pois o seu mal é um mal do seu tempo, compartilhado com todos seus contemporâneos.
O homem vulgar ao se encontrar com um mundo técnico e socialmente tão “perfeito”, pensa que foi criado pela Natureza, e nunca se lembra dos esforços geniais de indivíduos excepcionais que a sua criação e manutenção pressupõe – radical ingratidão com tudo o que tornou possível a facilidade de sua existência. Comporta-se como uma criança mimada, acreditando-se credora de todos os direitos e não obrigada a nada. Um “senhorzinho satisfeito” que até sabe que certas coisas não podem ser e, apesar disso, e por isso mesmo, finge uma convicção contrária com seus atos e palavras – a falta de seriedade é a tônica da
existência do homem-massa.
Os avanços tecnológicos e sociais do século XIX formaram homens carentes de um centro, carentes de um dentro, homens feitos às pressas, sem valores simbólicos ou morais, sem valores outros que não fossem a busca incessante pelas garantias materiais e as dadas pelo Estado.
Este “senhorzinho satisfeito” se sente senhor de sua vida. Já o homem especial ou excelente está constituído por uma íntima necessidade de apelar por si mesmo para uma norma além dele, superior a ele, a cujo serviço se coloca espontaneamente – vive em servidão essencial, sempre disposto a superar a si mesmo, sua vida não tem sabor se não está a serviço de algo transcendente. O homem nobre define-se pela exigência, pelas obrigações, não pelos direitos. Noblesse oblige.
A elevação do “homem de ciência” à categoria de sábio coaduna com a revolução das massas. O homem de ciência especializa-se (“especialista”) num pequeno recorde da natureza, e do ínfimo conhecimento adquirido se crê sabedor dos mistérios do universo – extrapola analises e recomendações sobre tudo, mas invariavelmente erra.
A rebelião das massas é a revolta dos piores contra os melhores – a abdicação da dignidade humana em troca de lisonjas e pequenas vantagens, fenômeno comum ao consumismo capitalista, ao reivindicacionismo socialista e ao espírito de rebanho fascista.
Por trás deste fenômeno havia a ascensão de um poder central esmagador que, para neutralizar todos os poderes intermediários, fazia promessas lisonjeiras a qualquer nulidade que o apoiasse. Aos poucos, suprimia-se toda diferença qualitativa entre governantes e governados: a mediocridade das novas classes dirigentes em todas formas de governo era a expressão de um novo tipo de poder, composto de um exército de arrivistas e inconsequentes, incapazes de compreender o passado e, a fortiori, de prever o futuro. As consequências foram devastadoras (II GG).
Passado quase um século, o que mudou no mundo? As minorias qualificadas seguem sendo dizimadas em todas as áreas, da política às artes. O poder segue centralizando-se, agora com o reforço das inovadoras técnicas de controle social, com aplicação potencializada pelo alcance das diferentes mídias. O “senhorzinho”, já totalmente desprovido do sentido trágico da existência humana, acredita-se vítima do imponderável que o afasta de seus sonhos irreais. Ignorante, des-espiritualizado, acovardado, o “homem médio” tornou-se pressa fácil de uma minoria que não mais prima pela excelência ou submete-se ao transcendente, mas apenas messianicamente leva o mundo a sua destruição – a massa mimada aspirando satisfazer seus desejos entrega-se ao poder totalitário que a ludibria em seu anseio.
Enfraquecido espiritual e intelectualmente, o “senhorzinho” abre mão de suas liberdades em troca de uma irreal promessa de proteção contra as suscetibilidades da vida, apenas para acabar sem a liberdade e a proteção.
O homem-massa europeu contemporâneo de Ortega y Gasset sucumbiu aos regimes totalitários de Stalin, Hitler e Mussolini. Hoje a sociedade massificada verga-se diante de ditadores difíceis de identificar, e, por isso mesmo, mais nocivos e árduos de derrotar.
Notas
José Ortega y Gasset (1883-1955) nasceu em Madrid, Espanha.
Filósofo, Ortega y Gasset interpretou como poucos o espírito do nosso tempo. A base de entendimento da obra de Ortega ultrapassa os meandros da filosofia e nos dá uma claridade muito interessante da análise do homem e dos contextos históricos.
Obras destacadas: Meditações do Quixote (1914), Espanha Invertebrada (1921), A Desumanização da Arte (1925), O que é Filosofia? (1929), entre outras.
A Rebelião das Massas começou a ser publicado no jornal El Sol em capítulos a partir de 1926. Publicado em livro em 1930.
No século XIX o Estado começa a ganhar contornos democráticos, com a burguesia liberal e a nobreza (já decadente) apresentando uma nova proposta de governo e organização social, denominada Nacionalismo, de modo a fortalecer os valores internos (cultura, língua etc.) e externos (o Imperialismo ou Neocolonialismo), em busca de novas áreas de controle principalmente na África e Ásia. Essa é basicamente a trilogia da busca incessante das potências europeias: mercado consumidor, matéria-prima e mão-de-obra livre e barata. Esta mão-de-obra de cunho materialista, regida como bloco, perde sua identidade e liberdade (domínio interior), formando o homem-massa que aceita a mão forte do Leviatã (o Estado) – os europeus estavam massificando a própria população em nome do progresso material.
Nos séculos XIX e XX o ponto final da sociedade passou a ser o bem-estar do Estado (politicamente, economicamente, militarmente, etc.) em detrimento do indivíduo. Mas são os indivíduos que deveriam estabelecer um regime político e econômico que propiciasse a maior oportunidade de bem-estar para todos.
Ortega identificou o surgimento do homem carente de um centro por não estar mais em busca de valores espirituais, mas sim de valores materiais. O novo senhor era a técnica e a ciência e não mais um ser metafísico – inversão do ser e do ter. Os líderes dos governos totalitários buscam assumir, simbolicamente, auras messiânicas diante da população.
Em Psicologia das Multidões, Gustave Le Bom define o comportamento de massa das multidões: pessoas imersas em uma aglomeração, uma multidão, perdem o caráter individual e são capazes de cometer as piores barbáries.
O “senhorzinho” padece de damnatio memoriae (condenação da memória), ou seja, a negação de tudo que é contrário ao seu desejo. Termo emprestado do Direito Romano que indicava a pena em apagar qualquer traço de lembrança de uma pessoa (e.g. um traidor), como se essa jamais tivesse existido.
“Civilização é, antes de mais nada, vontade de convivência.” – testemunhamos no presente um processo de regressão civilizacional com a despersonalização de quem pensa diferente.
Para o “senhorzinho”, liberdade é poder fazer o que quiser. Ele esqueceu que liberdade é ter condição de fazer o que deve ser feito.
Atualmente o Estado fomenta a concupiscência nas massas vendendo-a como liberdade, enquanto tolhe sua voz e direitos básicos. Assim, o homem-massa escraviza-se duas vezes, diante do Estado e, principalmente, perante de seus vícios – a real liberdade é o domínio das pulsões e dos vícios, é não submeter-se aos próprios desejos ilegítimos.