“Havia algo que vi e me desagradou… o seixo era achatado, seco de um lado e lamacento do outro.” – Antoine Roquentin não mais suporta a aparência das coisas, perdeu o sentido simbólico
Personagens Principais Antoine Roquentin – narrador, historiador, 30 anos
Personagens Secundárias Anny – atriz inglesa, ex-amante de Roquentin Autodidata – escrivão do oficial de justiça, frequenta a mesma biblioteca que Roquentin
Interpretação Este primeiro romance de Sartre da origem ao seu existencialismo – uma rebelião metafísica (o existencialismo é antimetafísica). Sartre criou a ideia de que o homem não nasce com nenhuma espécie de essência – nossa existência precederia nossa essência (violando a evidência de potência e ato aristotélica). Ele concede que o carpinteiro antes de fazer uma cadeira a concebe ao menos mentalmente, e neste caso a essência (projeto da cadeira) precederia a existência (cadeira concreta terminada), mas isto não se aplicaria ao ser humano dado que (para Sartre) Deus não existe. Assim, no existencialismo sartriano o homem é livre para viver como quiser – “Se Deus não existe, tudo é permitido.” diria Ivan Karamázov.
Jean-Paul Sartre queria basicamente se rebelar contra qualquer ordem contrária ao homem como árbitro da própria realidade – produzindo a possibilidade de embarcar numa moral que servisse a seus próprios objetivos e não uma moral que tivesse sustentação em algo transcendente ao ser humano. No existencialismo de Sartre não há nenhuma essência humana – não existe natureza humana. Existe aquilo que você fez ou aquilo que você vai fazer.
Em A Náusea Sartre quer demonstrar a absurdidade e falta de sentido do mundo. Porém, ironicamente, podemos interpretar o romance como uma denúncia de sua própria ideologia. A verdade é que Antoine Roquentin perdeu o sentido simbólico da vida, e com ele o sentido da própria existência – as coisas em si próprias, fora de um sentido, são nauseantes. A destruição da poesia do mundo faz com que nada mas faça sentido.
Tudo que é manifestado no mundo material corresponde simbolicamente a algo no plano superior. A perda da capacidade de entender isto é nossa derrocada ontológica, pois passamos a só enxergar a matéria. Não se pode olhar o mundo de uma perspectiva não-simbólica.
Sartre não acredita na existência de nada que seja transcendente ao homem. A ordem natural das coisas preside a totalidade dos fenômenos, mas quem pode dizer que não exista uma intervenção na ordem natural das coisas por obra do desejo de Deus? A sinistralidade intrínseca na materialidade do mundo é que provoca a náusea sartriana.
O mundo nauseante de Sartre é uma desgraça autoimposta, não foi o mundo que a criou. A desgraça foi gerada em sua própria mente, e na daqueles que acreditam-se vítimas do destino. Uma das regras básicas da saúde mental é perguntar se tudo o que acontece com você faz algum sentido, mesmo em se tratando de coisas triviais (ver EmBusca de Sentido de Viktor Frankl). A busca de sentido nas adversidades pode levar ao efeito alquímico necessário para uma transformação favorável.
O existencialismo sartriano descarta Deus, a transcendência e qualquer hierarquia de valores. Mas, como dizia G. K. Chesterton, “A man who won’t believe in God will believe in anything.”, e Sartre acaba endeusando a si mesmo e ao Partido Comunista.
Curiosamente, Sartre escreveu A Náusea para nos elucidar algo, mas acabou apenas denunciando seu próprio engano.
Notas
Jean-Paul Sartre (1905-1980) nasceu em Paris, França.
Professor, escritor e crítico literário, Sartre notabilizou-se como um agitador cultural que posava de filósofo para as massas, principalmente de jovens seduzidos pela ideia de relativização dos princípios morais.
Seu existencialismo baseia-se em deturpações das ideias de Edmund Husserl (1859-1938) e Martin Heidegger (1889-1976). Apesar da inicial popularidade, sua filosofia desprovida de sentido logo caiu em esquecimento, sendo inicialmente desbancada por um novo modismo, o estruturalismo.
Alinha-se ao comunismo mais para manter-se na vanguarda e com apelo junto aos jovens, proferindo impropérios cada vez mais nefastos, como a “violência necessária” com a qual educou os membros do Angka Leu que exterminariam quase que uma terça parte da população cambojiana. Egocêntrico, devasso, mentiroso e viciando, Sartre morre endividado e incoerente (ver Os Intelectuais de Paul Johnson).
Sartre aborda a absurdidade do mundo literariamente em A Náusea e ensaisticamente em O Ser e o Nada. Albert Camus faz o mesmo com O Estrangeiro e O Mito de Sísifo respectivamente.
A Náusea foi publicado em 1938, sendo a primeiro romance do autor. Outras obras destacadas: O Ser e o Nada (1943 – ensaio) e Entre Quatro Paredes (1944 – teatro).
A narrativa de A Náusea desenvolve-se na cidade fictícia de Bouville, que lembra Le Havre onde Sartre morava e lecionava enquanto escreveu o romance entre 1932 e 1936. Sartre escolheu o título inicial Melancolia (referência a gravura de Dürer), mas concordou com o editor em mudar para A Náusea.
Em carta a um amigo Camus comenta A Náusea dizendo concordar com a sensação de Roquentin de que tudo é absurdo. Mas não aceita este sentimento como fim de linha, com sugere Sartre. Para Camus a absurdidade é o início de algo, e escreve O Mito de Sísifo onde tenta explicar o que fazer (de fato Camus não sabia o que fazer). Mais tarde Camus acusa Sartre – ver O Homem Revoltado – de querer colocar uma transcendência humana no lugar da divina que combateu.
Sartre fala da inexistência de Deus como prova da existência preceder a essência no livreto O Existencialismo é um Humanismo que reproduz conferência do autor no ClubMaintenent (Paris) em 29/10/1945.
Simone de Beauvoir (1908-1986) adapta o existencialismo sartriano para o feminismo no livro O Segundo Sexo dizendo que as mulheres não nascem mulheres, mas elas se transformam em mulheres – não haveria feminilidade intrínseca, natural. Em seu delírio Beauvoir nos diz que as mulheres só são mulheres porque se transformaram de alguma maneira em mulheres, voluntariamente ou não.
O impacto da Primeira Grande Guerra provocou o sentimento de absurdidade refletido nos existencialismos sartriano e camusiano, bem como no teatro de Ionesco e Becker.
Enxerto de Os Irmãos Karamázov que dá origem a paráfrase “Se Deus não existe, tudo é permitido.”: “Ivan Fiodorovitch acrescentou, entre parenteses, que é nisso que consiste toda a lei natural, de sorte que, destruindo-se nos homens a fé em sua imortalidade, neles se exaure de imediato não só o amor como também toda e qualquer força para que continue a vida no mundo. E mais: então não haverá mais nada amoral, tudo será permitido, até a antropofagia. Mas isso ainda é pouco, ele concluiu afirmando que, para cada indivíduo particular, por exemplo, como nós aqui, que não acreditamos em Deus nem na própria imortalidade, a lei moral da natureza deve ser imediatamente convertida no oposto total da lei religiosa anterior, e que o egoísmo, chegando até ao crime, não só deve ser permitido ao homem mas até mesmo reconhecido como a saída indispensável, a mais racional e quase a mais nobre para a situação.” (livro II – capítulo VI)